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Mostrando postagens de abril, 2008

O guardião da manhã

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Luci Afonso Acordo aborrecida com pequenos problemas. Ainda não fiz a declaração do Imposto de Renda, que sempre deixo para a última semana; minha secretária não está limpando a casa direito e começou a reclamar da ida diária ao supermercado; preciso retomar as sessões de acupuntura para a tendinite, mas não tenho ânimo; o trabalho está um saco; ainda não escrevi a crônica da semana. Tomo o café sem sentir o gosto e me arrumo com mau humor, antevendo a chatice de enfrentar o trânsito congestionado no Eixão e de procurar uma vaga no estacionamento entupido. Esqueço que justamente ali me aguarda um ser humano-humano, que tem o dom de transformar meu espírito. — Bom-dia, madame! - Saúda a voz de samurai. — Bom-dia, Sr. Pernambuco. - Respondo, já me sentindo um pouco mais leve. — A senhora tá boa? A família tá boa? - pergunta o sorriso de dentes escassos. — Tudo bem. E o senhor? — Tudo bem, graças a Deus. E, como um sacerdote que acabou de celebrar a missa matinal, profere a bênção que sem

Olhos de areia

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Mônica Thaty Joana sumiu. Em uma noite sem estrelas, e sem deixar rastros ou pistas. Sequer migalhas de pão que indicassem seu caminho. Apenas a voz carregada de tristeza e cortada de soluços no celular do seu namorado. “Não posso mais...” E depois que a voz rouca também sumiu, Lucas ainda ficou com o telefone mudo na mão, sabendo que havia algo a fazer, mas o quê? Lucas, que não saía de madrugada, cheio de trancas na porta e preocupações. Lucas que desconfiava de trovões, raios e ventos fortes. Lucas que não ia a lugar algum sem o casaco e o guarda-chuva, que mesmo quando menino subiu em poucas árvores e colecionou poucos machucados. Esse mesmo Lucas viu-se obrigado a sair na noite fria à procura de Joana. Resolveu pedir ajuda a Bárbara, melhor amiga de sua namorada. Bárbara, de olhos verdes, cabelos vermelhos e alma de bruxa. Bárbara que cresceu fascinada por histórias de mulas-sem-cabeça, sacis e fantasmas, que apaixonou-se ainda pequena pelo Negrinho do Pastoreio e o invocava em no

Entrevista com Rubem Alves*

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por Josué Machado Qual seu método de trabalho, se tem algum: é sistemático? Meu corpo e minha alma ainda não entraram na rotina da linha de montagem. São crianças. Escrevem como quem brinca. Às vezes, correria, pique. Noutras, no ritmo do balanço. Amo escrever. Não há método para o amor. Ele acontece quando se sente tesão. E sinto sempre tesão por escrever. Fernando Pessoa sofria da mesma coisa. Escreveu: " Sinto uma ereção na alma ..." Autores dizem que começam a escrever e não sabem o que vai ocorrer depois. Que a história se conduz sozinha. Como é no seu caso? Olha, quando vou escrever, coloco as idéias no papel, como se fossem um mapa a ser seguido. Mas sei que é inútil. Porque na viagem eu vejo cenários imprevistos e me embrenho por eles. Tenho a sensação de que, quando estou fazendo meu esbocinho, as idéias comentam: " Ele está só fazendo esboço. Não é preciso ir lá. Quando ele começar a escrever, então apareceremos ..." Trabalha lenta ou rapidamente? Tudo de

XXIV SARAU DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

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100 Anos sem Machado de Assis Teatro SESC Garagem - 913 Sul 28 de abril - 20h30min Este Sarau especialíssimo fará homenagem ao maior mestre da Literatura Brasileira. Na parte musical, grandes letras da MPB com nomes conhecidos em nossa cidade: a cantora ÂNGELA REGINA e o violeiro MARCOS MESQUITA. Após a apresentação, coquetel em que se realiza a grande confraternização do público com os participantes. Serão autografados livros de Amneres Santiago, Emanuel Mazza, Alexandra Rodrigues, Isolda Marinho, Marco Antunes e Luci Afonso.

Mãe e filha

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Luci Afonso Alguém deixara uma boneca caída na grama. A mulher a pega com cuidado, desamassa o vestidinho florido e fecha os grandes olhos castanhos. Limpa também uma pequena mancha vermelha no rosto de porcelana. Olha para cima, contando os andares, até chegar à sexta janela. A esta hora, a filha deve estar dormindo, exausta, após um dia de brincadeiras com o pai e os irmãos. Em pensamento a aconchega no edredom, acende o abajur e sai devagar do quarto, como sempre faz quando ela está em casa. Mal pode esperar para revê-la no dia seguinte. Enquanto volta para seu apartamento, ouve ao longe sirenes e vozes. Algo grave parece ter acontecido. Lembra-se, de repente, da manhã de domingo em que a menina nascera, deixando suavemente o útero e deslizando gentil pelo corpo da mãe, como se não quisesse lhe causar dor. Minutos depois, o pequeno ser levava a boca ao seio, que nunca recebera carícia tão delicada. Quando abre a porta de casa, percebe que sem querer trouxe a boneca. Outros pontos ve

Carrossel

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Mônica Thaty Em um dia de céu nublado e coração cinza, Rita foi ao parque de diversões. Chegou lá sem saber aonde ir, guiada por um sentimento tão indefinido quanto irracional. Vontade de não ver ninguém conhecido. Vontade de perder-se na multidão. Dia de semana, multidão de meia dúzia, mas quem precisa de mais do que isso? Um único desconhecido pode ser uma turba para quem procura a solidão. De longe Rita viu o Carrossel. Sem luzes e sem brilho, com cavalos de tinta descascada. Mas ainda assim seu coração encheu-se de ternura, lembrando de outros carrosséis, cheios de sonhos e risadas de menina. Pagou o ingresso, acomodou-se em um cavalo verde, de crina amarelo encardido. E começou a girar. E girou e girou. Olhou para dentro e para fora. Para frente e para trás. Riu por um momento. Achou tudo muito chato, em outro. Andou um pouco por entre os cavalos. Subiu em um azul. Desceu novamente e ficou um pouco parada, os braços meio abertos, equilibrando-se no espaço. Lembrou-se de como se di

O Chamado*

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Por Lygia Fagundes Telles Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco aprendi duas palavras aparentemente banais, mas que acabaram tendo tanta importância no meu ofício, a palavra liberdade e a palavra justiça . Mas foi no terreno dos esportes que aprendi a disciplina , segredo do modesto equilíbrio desta escritora neste indisciplinado país. Sim, foram aquelas aulas de esgrima que eu amava tanto e ao mesmo tempo, temia, foram elas que me ensinaram a dura lição do desafio de exigir rapidez de raciocínio a alguém assim de reações demoradas, lentas, Uma tartaruga! ouvi minha mãe gracejar. Contudo, como me sentia feliz naquele uniforme todo branco, a túnica fechada e o coração de feltro vermelho pregado no lado esquerdo do peito. O professor provocava e investia enérgico nos treinos, máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio das ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito

Encantada

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Luci Afonso Espero à beira do rio, enquanto o barco se aproxima lentamente. Soltei o cabelo loiro, que chega à cintura. Escolhi o vestido amarelo de renda, nosso preferido, e o chapéu de palha amarrado com fita. Os pés estão descalços para adentrar a água fria. Ele se levanta e estende a mão. Veste a camisa azul clara, nossa preferida, e uma calça de linho branco. Cortou o cabelo moreno, aparou a barba e se perfumou com aquele aroma de que tanto gosto e de que não lembro o nome. Sento-me no banco de madeira e recebo, em papel de seda de cor indefinível, o presente que ele me trouxe da longa viagem. É uma sombrinha japonesa, bordada com rouxinóis e flores de cerejeira. — Para passearmos juntos - ele diz, sorrindo, na voz quase esquecida. Ele começa a remar. Estamos no meio do rio quando ele pára e segura meu queixo com a ponta dos dedos. — Senti sua falta - falamos ao mesmo tempo. Um rouxinol se desprende do bordado, pousa no ombro azul e começa a cantar. Minúsculas flores rosadas caem

Profissão de fé

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— Vão em paz, meus filhos! Padre Gregório quase soltou um suspiro após a frase, mas engoliu-o antes que fosse percebido por alguém. Já não conseguia disfarçar a monotonia na voz ao celebrar as missas, e já era difícil encarar os fiéis. Não podia dar-se ao luxo de alguém perceber mais algum tom de enfado em suas ações. Atribuíam as suas frases ásperas e as suas repreensões ríspidas a uma certa impaciência, mas a sua fama de “estranho” já havia chegado à diocese. Os freqüentadores da sua igreja cogitavam se ele talvez fizesse parte de alguma daquelas correntes progressistas que não toleravam qualquer tipo de superstição ou uma tradição mais eloqüente. Mas ainda assim era o pároco, o pastor espiritual da pequena cidade de cinco mil ovelhas fiéis e dedicadas. Na verdade, os fiéis eram mais complacentes com Padre Gregório do que ele com sua congregação. Sentia falta da época em que trabalhou como secretário na arquidiocese. Nada de fiéis requisitando sua presença nas madrugadas frias para a

A paixão feminina pela palavra*

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Entrevista com Nélida Piñon (Por Luiz Costa Pereira Junior) Há quem diga que ler muito não faz escrever melhor, necessariamente, e o ideal seria ler tanto quanto escrever muito. Para escrever bem posso dispensar o hábito de leitura? Sem a leitura não acumulamos vocábulos, não temos contato com pensamentos que descobrimos na leitura, não confrontamos nossas idéias com as do livro. Você precisa ser reformulado pelas idéias do outro e um livro é uma maneira. É preciso se opor à idéia do outro para vir a ter idéias que possam representar uma mudança pessoal. Se você lê e não escreve, significa que você está intimidado. Que a leitura não está lhe dando a liberdade que ela tem de oferecer. Escrever deve ser uma conseqüência natural do prazer de ler. Agora, acho também que ler e escrever não são incompatíveis. Quanto mais você lê, mais se dá conta que é dificílimo escrever, mas é necessário e pode aprimorar a sua escrita. No que um texto produzido por uma mulher é diferente do feito por um ho

Diário

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Luci Afonso ...Janeiro Beijo homem moreno com flores no corpo. Observo meninos pelados nas árvores. Dançando com vestido vermelho curto. Ajudo menina a fugir da escola. Matei um homem, queimei as roupas dele e fugi. Meu pai precisava ser enterrado. Conserto meus anéis. Namoro homem cego e defeituoso. Nadando nua ao sol. X era meu e depois morria. Fevereiro Comunidade espiritual em Planaltina. Uma cobra e uma aranha azuis na minha cama. Passeando em Paris. Visita a Araxá. Quarto arrumado com hortênsias. Escultor cego. Festa em que eu não me divertia. Dente quebrado. Dando banho num macaco. Março Beijando um homem alto, que me levantava do chão. Eu tinha matado uma mulher e me escondia. Encontro meu pai, peço desculpas, nos abraçamos. Oficina de bordado. Perdida em labirinto. Embalando criança. Vestido de casamento cor de vinho. Noivos gêmeos. Abril Muitos arco-íris. Meu pai era mestre-de-obras na minha casa. Nadando com bebê. Eu era escolhida num templo e aprendia a velejar um barco sag

Contra a maré

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Mônica Thaty Depois que Melissa terminou de desfazer a última caixa da mudança decidiu que era hora de arrumar outras coisas em sua vida. Sentou-se na frente do computador, armada com papel e caneta e espírito de detetive. Algumas pesquisas e meia dúzia de telefonemas depois e conseguiu fazer um levantamento quase completo da vida de Ricardo, o ex-namorado. Telefone, endereço, local de trabalho. Tudo ali, em mãos. Só faltava a coragem. Como se aborda alguém que não se vê há quinze anos, mas de quem ainda se lembra a voz, o cheiro, o toque, o beijo? Alguém que você acredita sinceramente que não ama, mas que é capaz de provocar arrepios em seu corpo apenas em encarar um olhar sorridente em uma foto? Melissa pensou no que tinha a perder. Nada. Um casamento terminantemente desfeito, acabado com tanta civilidade que sugeria falta de emoção. Ou pior: uma paixão extinta como uma fogueira que queimou rápido demais. Restaram apenas dois filhos lindos. Aliás, olhar os filhos era o único consolo

Escrevo porque...*

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Fernando Sabino “Escrevo porque me sinto descompensado em relação à realidade. Preciso de uma verdade fora de mim em que me agarrar. Me sinto defasado. A minha realidade interior vive abaixo do nível da realidade que me cerca. Para restabelecer o equilíbrio, num contato normal com os demais seres humanos, tenho que escrever, porque a recriação da realidade pela imaginação, através da linguagem escrita, é a maneira que tenho de me comunicar. Há uma espécie de catarse naquilo que escrevo: para não precisar me deitar no divã de um psicanalista. Se escrevi, por exemplo, um livro com o título A faca de dois gumes , pode ter sido para não esfaquear alguém.” “Sempre que me sento para escrever, sou um principiante. Vou escrever alguma coisa que não sei o que seja, justamente para ficar sabendo. E que só eu posso me dizer, mais ninguém. Por isso às vezes passo horas, dias à procura da palavra adequada ou do encadeamento de uma frase. Não quero repetir coisas já ditas, inclusive por mim, o que i