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Mostrando postagens de novembro, 2020

Prêmio Jabuti

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Está tudo aqui

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  Luci Afonso     Está tudo aqui: a grama macia, o ipê-rosa, o céu puro azul, a nuvem de algodão, o canto da cigarra. Então, penso em você. Quando te vi a primeira vez, reparei nos seus sapatos. Nunca tinha visto tão feios. Depois vi o lugar exato onde você começaria a perder o cabelo. Calvície precoce , pensei. Continuei te examinando enquanto você falava. Os olhos de amêndoa o faziam parecer meio japonês, e a pele morena jambo (inventei essa cor para sua pele) era um sinal de que você vinha de outra região. A boca bem desenhada guardava um sorriso confiante. A voz era grave, aveludada, e os óculos, redondinhos como os de John Lennon. Um quebradinho no dente lhe dava um ar desprotegido. A risada solta balançava todo o seu corpo e quase te levava às lágrimas. As nuvens agora formam um elefante. Uma flor do ipê-rosa cai no meu rosto; dizem que é uma bênção da natureza. A cigarra dá uma pausa no canto. Você mentiu sua idade, para parecer mais velho — nem tinha vinte anos. Eu

Ninguém me amou como você

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  Luci Afonso   A casa amanheceu em meio à névoa densa e fria, que umedecia até a alma. Ela acordou mais tarde, serviu o chá, procurou o álbum de fotografias antigas e começou a folheá-lo, encolhendo-se debaixo do cobertor. Fotografias preto e branco explicavam o presente e anteviam o futuro. Pedaços de alegria saltavam das imagens, enquanto pedaços de tristeza as amarelavam com crueldade. Viu-se aos vinte anos, esbelta, cabelo longo, sorriso solto, envolta no abraço dele: aconchegante, seguro. O abraço dele: refúgio, jardim, nascer do sol. Lembrou-se amada. O amor dele tinha o toque da seda, o calor de uma coberta numa noite de chuva. Estava tão certa desse amor que o retribuía com um afeto sem dor. Tanto que não sofreu na separação. Ou pensava não ter sofrido. Agora sentia vontade de dizer: Ninguém me amou como você . Mas estavam distantes no tempo e no espaço. Sonhara com ele. Faziam amor num quarto de hotel. No momento do gozo, ele a inundou  com o fluido puríssimo do hom

Mulheres maduras

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                                                                      Isolda Marinho   Mulheres maduras usam sapatos de cor e assumem riscos, quando os retiram para refrescarem os pés em um riacho de água mansa. Desligam seus telefones para que nada interrompa a beleza deste momento. Elas são senhoras de si mesmas. Dispensam sutiã e caminham como garça que conhece a trilha dos poderosos. Não ligam para lençóis mal dobrados ou vincos não marcados. Não se preocupam com relógios que não são despertadores nem com envelopes sem remetente. Mulheres maduras são quase puras. Às vezes, semideusas. Ainda que tenham gestos frívolos, não perdem a sabedoria. Não têm aureola no alto da cabeça, mas sabem usar a cabeça quando querem impressionar com o coração. Compartilham seus saberes com outras mulheres. Formam uma ciranda de sonhos e se encontram num piquenique no parque, à beira de um lago, para se inspirarem à luz do sol que se despede do dia. A maturidade destas mulheres é como rocha que s

Príncipe dos pardais

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  Luci Afonso   Quando cheguei em casa, a gata parecia me encarar, mas logo descobri que sua atenção estava voltada para um pardalzinho que entrara no quarto e pousara no lustre de metal.  Ele voava até o guarda-roupa, andava por cima dele e voltava ao lustre, sem saber como escapar. Abrimos a janela para que ele saísse, mas ele não a encontrou. Com o tempo, pareceu ter se cansado e pousou de vez em cima do guarda-roupa, longe do nosso alcance.  Passei a noite ouvindo seus barulhinhos. De madrugada, ficou preso entre o móvel e a parede, sem conseguir levantar voo. Acordei meu sobrinho, que morava comigo há alguns meses. Breno era forte e bonito, tinha 1,90 de altura e continuava crescendo. Perdera a mãe aos onze anos. O pai, no momento, não conseguia cuidar dele, e nós o acolhemos Era quieto, um pouco preguiçoso, como se é aos dezesseis, e tinha múltiplas inteligências, tanto para consertar coisas quanto para resgatar orquídeas, pardais e o que mais estivesse em perigo. Foi ele que p

Noventa sóis

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  Para Guaracy Luci Afonso Trinta e um de outubro. Aniversário de noventa anos de Guaracy. O dia amanhece chuvoso, mas o sol já espera para brilhar na festa que começará daqui a pouco. Diz a lenda indígena que o Deus Sol Guaracy, criador e protetor de todos os seres vivos, apaixonou-se pela irmã, a Deusa Lua Jacy, rainha da fauna e mãe de todos os vegetais. Diz ainda que as duas irmãs eram tão belas que durante muito tempo não puderam se olhar. Enquanto uma dormia, a outra descansava dos cuidados com o mundo. Quando a outra acordava, uma vigiava e protegia todos os seres viventes. Foi assim até se reencontrarem, já envelhecidas, no dia predestinado. A partir de então, velavam juntas pelos caminhantes da vida. Guaracy cuidava de todos, não esquecia os presentes de aniversário e de Natal, era generosa com os sobrinhos carentes, era pai e mãe para a mãe, o pai e os irmãos. O sorriso discreto e permanente. A atitude positiva e proativa em relação à vida e ao viver. A dedicação. A renúnci