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Primeira carta ao meu pai

Primeira carta ao meu pai Luci Afonso Pai, hoje é 1º de agosto de 2022. Faz mais de quarenta anos que você partiu. Saiu de casa para viver nas ruas de Araxá, às vezes sem ter onde dormir, sem se alimentar direito. Devorado pelo álcool e pela solidão. Fiquei sabendo, por um primo, que você morreu num hospital psiquiátrico, sem ninguém ao seu lado. Ia ser sepultado como indigente, não fossem seus tios aparecerem para enterrá-lo. Tenho 62 anos, tenho um filho, Ramón, hoje com 26 anos. A maior alegria da minha vida. Gentil, sensível, generoso. Estudei muito. Aprendi línguas. Tive vários empregos, até chegar à Câmara dos Deputados, uma das mais importantes instituições do país. Trabalhei muito até me aposentar. Tenho uma doença grave, mas não fatal. Tive muitos namorados, hoje tenho muitos amigos. Sou Luci Afonso, escritora. Voltei a escrever depois de muito tempo. Publiquei quatro livros e estou finalizando o quinto. O título provisório é Príncipe dos Pardais, e será dedicado a você. Vol

Julia e eu

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Luci Afonso Durante a quarentena, minha terapeuta sugeriu que eu desse uma oficina infantil de criação literária para me distrair. Escolhi o nome: Colivrinho-20 — Oficina Infantil Virtual de Criação Literária. Para a primeira aula, fiz um roteiro dos dez passos para escrever uma história, que pretendia seguir fielmente, e entrei na live do Skype disposta a dar uma aula clássica de redação. Não funcionou: na outra tela só havia uma pessoa, que não se mostrava inteira. Ora eu via o cabelo, ora os olhos, mais frequentemente o teto. Eu não entendi o que ela dizia. Perguntei sua idade, ela disse que tinha 31 anos. Estranhei: a oficina não era infantil? Só com o tempo descobri que Julia tinha alma de criança. Só com o tempo ela se sentiu à vontade diante da câmera. Primeiro, apareceu o rosto. Depois, o cabelo, cada vez com uma tiara diferente. Mais umas semanas, ela deu um sorriso, e a tela se iluminou. Ela o repetia toda vez que terminava uma frase. Era encantador. No desenrolar da ofi

Mil tsurus

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                                                                                                                                                    Luci Afonso   O tsuru, pássaro sagrado japonês, representa a boa sorte e a felicidade. É também símbolo da paz. Quem pratica o origami, técnica de dobradura em papel, sabe que, segundo a lenda, são necessários mil tsurus para alguém ter um pedido realizado. Conta-se que a menina Sadako Sasaki, uma das vítimas da bomba atômica, conseguiu fazer 646 antes de morrer.   Seus amigos fizeram mais 354, para que mil fossem sepultados com ela. Seu pedido foi a paz da humanidade. Após quase dois anos de quarentena, estamos mudados. Sobrevivemos ao vírus, ao confinamento e à desesperança, mas trazemos marcas permanentes do isolamento prolongado. Perdemos muitas pessoas muito próximas. Amores se desfizeram na convivência sem tréguas. Crianças sentiram a   angústia da privação de liberdade. Porém, saímos dessa experiência mais humanos do que quando

Tzen Tze Re Rei - Loli Cosmica

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Versão de canção medicinal da comunidade Shuar, do Equador. O autor é Nase Chiriap. “Tzen Tze Re Rei” significa “a flecha que avança e abre as portas”.   Tzen Tze Re Rei   Y es aquí Donde quiero estar Junto a ti Re re Re re Tséntse a-re-re-re Tséntse a-re re-re re   De tus ojos Salen los colores Del universo Pedimos todo   Y esos colores Son el alimento Para la existencia Que somos todo Re re re...   De tu voz Salen los sonidos Del universo Que oímos todo   Y esos sonidos Son el alimento Para la existencia Que somos todo Re re re...   De tus manos Salen las caricias Del universo Que sentimos todo   Y esas caricias Son el alimento Para la existencia Que somos todo Re re...   Y es aquí Donde quieres estar Junto a ti (2x)

Oração ao bebê prestes a nascer

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                                                                                                                                                                                                               Luci Afonso   Para Sara Letícia e Camila Nasce logo, meu amor. Te espero com certezas e pressentimentos. Seu quarto terá todas as cores, seu berço, todas as bênçãos. Trocaremos risos e afetos. Suas mãozinhas vão acariciar o meu rosto, quando eu estiver cansada. Minhas mãos vão te segurar quando for preciso e te soltar quando for a hora.             Chega logo. Já sonho com o teu sorriso. Quero te vestir com todas as roupinhas que comprei e te perfumar com todos os aromas que escolhi para você. Quero ver seus olhos se abrirem pela manhã e se fecharem à noite. Quero ver você engatinhar, andar, correr, voar. Quero ter a vida prolongada nos teus descendentes. Sua primeira palavra não precisa ser “mamãe’. Tudo o que você disser será bem-vindo. Seus gritinhos de prazer serão nosso

Deus é bom

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  Luci Afonso     Enquanto as Torres Gêmeas desabavam em Nova York, numa bela manhã de setembro, meu filho de quatro anos procurava numa gaveta seus super-heróis favoritos, para enfrentar os monstros imaginários que desenhava. Às vezes, olhava para a televisão, sem se interessar pelo que acontecia.              Anos depois, quando ouvimos a notícia sobre outro ataque assassino, desta vez em Madri, ele continuava brincando em seu mundo inocente e pacífico, que só as crianças habitam.              Toda noite, antes de dormir, quentinhos na cama, líamos a Bíblia Ilustrada para Crianças, sempre seguido dos comentários infantis. No primeiro capítulo, Deus criava todas as criaturas, inclusive o homem. Ao final do dia, ele parava, olhava tudo o que tinha feito e gostava do resultado.              — Nossa, esse Deus gosta de tudo, hein ?! — observou a criança.               No segundo capítulo, Adão já vivia no paraíso, mas estava muito só, e por isso Deus lhe tirou uma costela e f

Bilhete de Leonardo

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Tia Luci, Eu estava vagando pelo apartamento vazio em uma noite de insônia quando decidi imprimir alguns textos, ou melhor, parágrafos que andei rabiscando nos últimos tempos. Estou lhe enviando alguns e gostaria muito que você os lesse quando tiver um tempo. Ah, e junto vai o quadro com o poema que você me emprestou há muito tempo. Ele é lindo, e adorei poder lê-lo quase todos os dias. Com carinho, Leonardo Poema de Mariza* Estive doente Dos olhos Da boca Dos nervos até Destes olhos que viram mulheres perfeitas Da boca que receitou poemas em brasa Ah... dos nervos manchados de fumo e café   Estive doente Não quero escrever Eu quero um punhado de estrelas maduras Eu quero a doçura do verbo viver. (Autor desconhecido)   Poemas não perdem a coragem. Recebi este das mãos da terapeuta Mariza Oliveira, um mês antes de ela falecer devido ao câncer. O poema me acompanha deste então, e esteve durante algum tempo com meu sobrinho Leonardo. Leia textos de