Profissão de fé




— Vão em paz, meus filhos!
Padre Gregório quase soltou um suspiro após a frase, mas engoliu-o antes que fosse percebido por alguém. Já não conseguia disfarçar a monotonia na voz ao celebrar as missas, e já era difícil encarar os fiéis. Não podia dar-se ao luxo de alguém perceber mais algum tom de enfado em suas ações. Atribuíam as suas frases ásperas e as suas repreensões ríspidas a uma certa impaciência, mas a sua fama de “estranho” já havia chegado à diocese.

Os freqüentadores da sua igreja cogitavam se ele talvez fizesse parte de alguma daquelas correntes progressistas que não toleravam qualquer tipo de superstição ou uma tradição mais eloqüente. Mas ainda assim era o pároco, o pastor espiritual da pequena cidade de cinco mil ovelhas fiéis e dedicadas. Na verdade, os fiéis eram mais complacentes com Padre Gregório do que ele com sua congregação. Sentia falta da época em que trabalhou como secretário na arquidiocese. Nada de fiéis requisitando sua presença nas madrugadas frias para a Unção dos Enfermos. Nada de jovens casadoiros ansiosos em ouvir suas palavras sábias sobre o Matrimônio. Nada de procissões mensais, intermináveis novenas, vigílias e mais vigílias, bençãos a casas, bicicletas, animais, automóveis, crianças... Isso sem falar nas correntes de oração, na fila diária de confissões, nas missas lotadas de segunda a segunda e nas pessoas ávidas por conselhos e orientações que ele não era capaz de dar. E agora aquela menina...

Padre Gregório olhou por sobre o ombro para as poucas pessoas que ainda restavam à porta da igreja, como se temendo que alguém pudesse ouvir seus pensamentos. Bem, mas se Deus não poderia escutá-lo, não seriam aqueles pobres ignorantes que conseguiriam.

O investigador enviado pela Santa Sé andava por ali, indagando a todos sobre os supostos milagres da menina. Mas logo Padre Gregório descobriu que ele também indagava sobre ele, suas ações, sua condução da situação, seu relacionamento com a paróquia. Na realidade era um julgamento no qual ele já sabia o veredicto. Soube no instante em que o Padre Emílio chegou à cidade e olhou-o de cima a baixo com seus frios olhos azuis por trás dos óculos de estilo moderno e falou sem meias palavras:
— Tememos que sua demora em avisar-nos do ocorrido tenha causado danos irreparáveis.

Padre Gregório pensou que estava tendo um infarto. Mas logo percebeu que a dor no peito era apenas a mais pura angústia. Sentia sua paz ruir como um castelo de cartas.
— Não quis dar corda a superstições...

Padre Emílio deu de ombros. Neste momento o outro religioso soube que seria o culpado por qualquer um daqueles danos a que o investigador se referia, seja lá o que isso significasse. Saiu do caminho daquele homem arrogante e passou a viver como uma sombra em sua própria paróquia. Não que isso fosse exatamente um sacrifício, já que era a arte que havia desenvolvido nos últimos 30 anos, desde que entrou no seminário. Ser pouco lembrado, pouco percebido. Parecer inteligente, mas não o suficiente para atrair inveja. Parecer pacato, mas não o bastante para pensarem que era medíocre. Dosar as palavras, as ações, e viver confortavelmente exercendo o sacerdócio como um velho guarda-livros.

E assim passaram os dias, uma, duas semanas. Padre Gregório não se interessava pelas investigações de Padre Emílio sobre os supostos milagres na cidade e adiava os pensamentos de ter que prestar esclarecimentos ao Vaticano. Burocraticamente rezava suas missas, ministrava os sacramentos e cumpria os rituais necessários.

Uma noite, o pároco acordou com batidas fortes na porta. “Provavelmente uma gestante com dificuldades no parto, e querem que eu vá ajudar”, pensou com raiva e ironia, maldizendo aquela cidade onde as pessoas chamavam o padre ao invés de correr para o hospital. Pensou em ignorar as batidas e voltar a dormir, mas achou que poderia ser pior para ele se o Padre Emílio acordasse e resolvesse abrir a porta. Levantou-se rapidamente e correu para a pequena sala, enrolando-se no robe.

Levou um susto ao vê-la ali. A tal da menina a quem atribuíam milagres. Qual era mesmo o seu nome? Isabel? Ana? Maria? Pequena e franzina, parecendo ter menos que os seus treze anos. Tinha um sorriso infantil, mas os olhos eram velhos e sempre haviam incomodado Padre Gregório.
— O que você quer a essa hora?
— Conversar.
Padre Gregório franziu a testa.
— Volte pela manhã. Isso não são horas de andar pela rua.
— É a melhor hora para conversar. Tenho uma proposta que pode te interessar.

O jeito informal da menina incomodou Padre Gregório. Não admitia nem mesmo a si mesmo, mas uma das vantagens do seu cargo que mais lhe agradavam era o tom cerimonioso e respeitoso com que todos o tratavam.
— Que proposta?
— Bom, antes quero que você saiba que eu sei de tudo.
— Tudo o quê?
— Que você não acredita em Deus.
— Quem te disse isso?
— Ele.

O pânico tomou conta de Padre Gregório. De onde Padre Emílio poderia ter tirado aquilo? Será que havia deixado transparecer algo? Não escrevia diários, não entrava em detalhes em suas confissões, media sempre as palavras...
— Por que o padre Emílio diria uma coisa dessas?
— Não foi o padre Emílio, não. Ele também não sabe de nada.
— Quem foi então?
— Ele.

A menina sorria e Gregório começou a sentir-se enjoado. Procurou uma cadeira para sentar-se, mas pensou que talvez fosse melhor falar lá fora. A menina antecipou-se a ele.
— A gente pode ficar aqui. O padre não vai acordar.
— Como você sabe?
— Sabendo.

Cada vez menos Gregório gostava da garota. Já não bastava ter inventado aquela história de milagres... Ela continuou a falar.
— Eu sei também que você não acredita em milagres.
— Milagres não existem.
— Eu existo.
— Você não é um milagre.
— Os médicos disseram que minha mãe não podia engravidar, e eu nasci. Quando eu fiquei doente, disseram que eu ia morrer, e eu não morri. Quando meu pai abandonou a gente e eu e minha mãe passamos fome, sempre tivemos ajuda.
— Isso não é milagre. Foi sorte.
— Foi a Divina Providência.
— Não vou discutir Teologia com uma criança.
— Claro que não. Você não tem bons argumentos.

A retórica da pirralha começou a irritar Padre Gregório. Tinha vontade de sacudi-la pelos ombros e colocá-la para fora. Mas ao mesmo tempo sentia-se tão fraco e cansado... Era um homem de mais de um metro e oitenta de altura, de ombros largos e porte atlético. Em boa forma, apesar dos quase 50 anos. Muito exercício e disciplina para manter a boa alimentação. Cuidava do corpo porque era tudo o que tinha, além dos seus pensamentos inconfessáveis. E aquela menina ali, de chinelos nos pés, roupa surrada e ar maroto era capaz de destruí-lo com poucas palavras. Deixou-se cair em uma cadeira e ela continuou, sem dar atenção às aflições do padre.
— Eu não quero ir embora dessa cidade e sei que você também não quer, apesar de tudo. Nós dois temos uma missão por aqui.´

Padre Gregório fez menção de interrompê-la, mas ela ergueu a mãozinha magra e prosseguiu, com segurança, e contou seu plano. Enganariam Padre Emílio. Falariam que nunca houve nada de milagres, somente uma menina um pouco instável emocionalmente e uma cidade muito crédula. E ele, Gregório, desvendaria o mistério e cairia nas graças da Igreja. E ela voltaria à sua vida normal. Até que chegasse o momento certo.
— Deus tem planos para nós.
Padre Gregório suspirou.
— Não, não tem.

A menina sorriu novamente. Passou a mão pelo rosto dele. Padre Gregório ainda estava sentado na cadeira, largado como um grande peso morto, sentindo-se muito, muito cansado. Mas de certa forma, ela havia trazido a esperança de volta para ele. Uma luz no fim do túnel, de retomar sua tranqüilidade. Mesmo que, no fundo, ele soubesse que havia algo mais, que nada seria o mesmo, por mais que tentasse negar. A menina deu-lhe um beijo no rosto e ele sentiu algo estranho. Os lábios eram frios, mas aqueceram seu coração. Ela foi em direção à porta, mas parou um segundo antes de abrir. Virou-se para ele, ainda sorrindo.
— Ah, meu nome é Maria Isabel. - E saiu para a noite.