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Mostrando postagens de setembro, 2008

Brancas de Neve

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Luci Afonso Os homens aproveitam o sábado para pescar com amigos no Lago e se recusam a levá-las. As duas sentem um leve desejo de vingança. A tarde está quente. Escolhem uma garrafa de vinho geladíssima e sentam-se no carpete, decididas a se embebedar. Conhecem-se há pouco tempo, mas vivem se encontrando para almoçar, fazer compras ou simplesmente bater papo. Riem muito juntas, por qualquer motivo. A dona da casa recolhe livros infantis espalhados pelo chão, entre eles o de Branca de Neve. Pertencem à filha de sete anos, que está passando o fim de semana na casa dos avós. Depois de algumas taças de vinho, ela sugere: — Vamos brincar de Branca de Neve? — Como é? - pergunta a outra. — Você nunca brincou? — Nunca - ela mente. — É assim: eu sou a rainha má e você é a princesa boa. Eu te dou uma maçã envenenada, você morde e cai no sono. Os anões pensam que você morreu e te preparam um leito de flores. O príncipe vem e te acorda com um beijo... — Cadê os anões? — Foram pescar. — E o prínci

Fragmentos de Viagem

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Alexandra Rodrigues Domingo, 10 horas Aos domingos o corpo e a vontade bifurcam-se na esquina do dia, a taquicardia incontrolável, o pensamento sereno. Parece que do meio-dia para a tarde é assim mesmo, o coração do prolapso mitral desobedecendo ao coração que mora fora da caixa torácica. E esse outro desembestado pelo mundo, cada vez mais cristal, tremendo diante de uma flor lilás, diante de uma criança no estacionamento, de pé descalço e mão estendida. Não devia haver crianças solitárias aos domingos. Terça-feira, 11 horas Muda o cenário e a narrativa: deixo o cerrado, chuvas esquecidas e aventuro-me pelas veredas de Guimarães Rosa na aula de literatura. Enfrento a calamidade do quente, no sertão onde a luz assassina demais, para desendoidecer o dia, leio palavras inventadas de livre pensador e mais que livre escrevedor. Faço anotações medindo cruzado pelas margens do livro, descubro que por pura soletração de si ninguém chega na terceira margem; que o Arrenegado, Cramulhão, o Não-se

Código Secreto

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Eneida Coaracy Quando os ponteiros do relógio assinalaram quatro horas, o segurança encarregado do controle de senhas disse que eu poderia entrar. Empurrei a pesada porta que dava acesso ao corredor que me levaria à UTI nº 1, que ficava à esquerda. O chão de porcelanato claro parecia refletir a minha enorme ansiedade, à medida que pisava o lustro silencioso das lajotas. O corredor tornara-se infinitamente mais longo e amplo — eu, uma minhoquinha que se arrastava na direção de uma fresta escura e desconhecida. No terceiro dia de internamento do meu filho, já me considerava uma veterana nessa nova e inóspita arena da vida. Abri a porta que dava acesso aos boxes. Outro segurança conferiu a minha senha e me perguntou se eu sabia quais eram os procedimentos. — Sim, sei. Tenho que lavar as mãos ali na pia, à direita, antes de me dirigir ao box nº 14, certo? — Certo, respondeu-me. Entrei, quase sem perceber nada ao meu redor, buscando somente o número 14, à direita. Parada aos pés da cama, ob

26º Sarau da Câmara dos Deputados

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Literatura : hai-cais e contos populares lidos por membros do Núcleo de Literatura. Música, dança e show de tambores , com a especial participação de artistas da comunidade nipônica. Músicos convidados : Nestor Kirjner e Rogério Midlej. Coquetel : culinária japonesa. Teatro SESC Garagem - 913 Sul 29 de setembro 20h30min

Que povo é esse?

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Luci Afonso O cenário cultural brasiliense está agitadíssimo neste início de setembro. Na terça, o Sarau da Tribo das Artes abre a Bienal Internacional de Poesia no SESC da 504 Sul. Sou uma das primeiras a chegar e lá encontro Cacá e outros membros do grupo, distribuindo material e amarrando cordéis. Quanta adrenalina! Parecem formigas dedicadas a um objetivo comum e que não param um minuto até atingi-lo. Isso não apenas antes do espetáculo, mas também durante e depois. Começado o show, eles transitam freneticamente. A cada minuto alguém entra ou sai do auditório e Cacá se apressa em fechar a cortina. Se o sarau durar três horas, o poeta-organizador-apresentador se levantará, pelo menos, 180 vezes. Enquanto assistimos a uma poemação, um vulto sai dos bastidores e chuta o violão encostado num banquinho. Poder-se-ia imaginar uma performance ao estilo de Jimmi Hendrix, mas é apenas o músico Máximo Mansur, que, por algum motivo urgente, precisa atravessar o palco escuro e tropeça. Atrás de

Um amor na contramão

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Alexandra Rodrigues A mulher seguiu, obediente, a placa que indicava o caminho à direita, evitou a contramão com medo de contrariedades e atolou-se por ali mesmo, em terra de certezas. Era mulher feita, desfeita em pesadelos de nuvens altas. O amor a chamava do outro lado da rua. Um amor de pé quase descalço. Um amor de suave estremecimento e simplicidade na casa do coração. Um amor de vegetação ressecada coroada de raras e enigmáticas flores vermelhas. Um amor de transparências aquáticas onde fluía a força da água em pedra dura, esculpindo vales e silêncios. Um amor de essencialidades amanhecidas que massageavam a alma. Um amor de sabedoria anunciada no sibilar de singelas palavras que cruzavam internos caminhos. Um amor que cantava o sabiá e observava a formiga na folha paciente do verde dia. Um amor de tarde para a noite, cristal coberto de pequeninas flores azuis. Um amor de sossego que despertava a luz do sol e se banhava no córrego da lua. Um amor cozinhado em fogo de lenha. A mu

Eu sei o que é primavera

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Clarice Lispector Bem sei que é uma vaidade dizer em plena primavera que eu sei o que é primavera. Às vezes porém sou tão humilde que os outros me chamam a atenção. É uma humildade feita de gratidão talvez excessiva, é feita de um eu de criança, de susto também de criança. Mas, desta vez, quando percebi que estava humilde demais com a alegria que me era dada pela vinda da primavera chuvosa, dessa vez apossei-me do que é meu e dos outros. Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o meu próprio pólen, sinto estremecimentos à toa quando um passarinho canta, e sinto que sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante, límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronta para recebê-la. Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e porque sem ele

Sarau das Estações

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Luci Afonso A sacerdotisa examina o templo. Almofadas de veludo se espalham pelo chão; as velas estão acesas. A fonte está prestes a desaguar-se, e os símbolos estão ávidos para serem decifrados. O pequeno sino anuncia a comitiva: feiticeiras-madrinhas em túnicas branco-negras; poetas dos minutos, dos ventos e das fadas; menestréis de melodias quânticas e de vilas brancas. Todos vestem a pureza de alma e a compartilharão durante a noite. Os convidados se refazem da jornada ao som de alaúdes. Servem-se de bandejas de frutos doces e taças de água pura. Daí a pouco vão saborear o vinho. Embaixadores de reinos distantes se reconhecem e se saúdam. Percorreram grandes distâncias e anseiam pela colheita de palavras maduras. O patriarca entra amparado pelas poetisas do afeto. Traz no braço uma ave belíssima e desconhecida, de longa plumagem branca. Abre a cerimônia numa língua encantada e depois permanece em silêncio eloqüente, acariciando o pássaro enquanto os presentes prestam reverência ao

Silêncios

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Alexandra Rodrigues I. Ela tinha-se especializado em recortar silêncios: agrestes, ensolarados, marítimos, delicados origamis suspensos no fio do sentir. Colecionava os silêncios em baús de espuma e maresia. Havia dias em que os silêncios a visitavam de manhãzinha, ainda ensonados, sonhadores. Eram os silêncios perfumados do despertar. Silêncios que espreitavam através da vidraça e enfeitiçavam o dia. Havia silêncios trancados à chave em uma caixa de vidro translúcido. E também silêncios azuis de solidão inacabada. E procissões de silêncios cristalinos atravessados por finos raios de luz. Havia silêncios que gemiam ao vento, silêncios de brisas e eternidades que ressoavam na catedral da existência como sinos de domingo. E que guiavam passos inseguros no labirinto do infinito. II. O silêncio infiltrou-se lentamente pela sola dos pés e conseguiu chegar até à alma. Ela sentia-se leve como um passarinho que reencontra a direção do sol. O silêncio foi penetrando, devagarzinho, pelas frestas

Terri primeiro, João Paulo Segundo

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Luci Afonso Terri Schiavo morreu duas vezes. Jovem e bonita, parou de comer para perder peso e talvez agradar ao marido Michael — na época o casal estaria em processo de separação. A bulimia trouxe a parada cardíaca e, em conseqüência, o estado vegetativo. O marido decidiu que ela não queria mais viver e, com a autorização da Justiça, desligou os aparelhos que a alimentavam. Os pais de Terri, que adivinhavam um sorriso onde outros viam mero reflexo, lutaram pela filha amada, que tinham a esperança de um dia recobrar a consciência. Foram apoiados por milhares de pessoas no mundo inteiro, mas venceu Michael Schiavo, que, não contente em matar a esposa de fome e de sede, fez questão de reduzi-la a cinzas, negando à família o sagrado direito ao último adeus. João Paulo II sobreviveu a atentado, dor e velhice, e ninguém cogitou de apressar sua partida. No último gesto, sem palavras, ficou evidente o grande sofrimento que enfrentava. Foi enterrado com véu de seda e anel de bispo, em perfumad

As águas do meu Nilo

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Alexandra Rodrigues O rio Nilo secou! Amanhã de manhã você lerá essa manchete no jornal da sua cidade. Se você morar em outros Egitos, poderá ensaiar a tradução livremente na língua do seu faraó: o rio Amazonas secou, ou o rio São Francisco, o Guaíba ou o Parnaíba. Não importa em que leito o seu rio corra: secou o rio da sua aldeia, o rio dos desejos da sua adolescência e juventude, o rio pelo qual navegou livremente a sua imaginação; secou o rio que banhou as margens dos seus sonhos e que encharcou de esperança a navegabilidade da sua vida; um rio situado em algum território impreciso entre o passado e o futuro, pelo qual você desceria um dia em viagem marcada no mapa do seu corpo e combinada com a sua melhor amiga. Imagine a amiga de uma vida inteira, aquela que você conheceu aos 13 anos no colégio, a quem confiou seus medos e segredos, aquela que se tornou mais que sua irmã, de quem você se separou com inaudível dor quando foi morar em outras terras e o destino as a