O Chamado*
Por Lygia Fagundes Telles
Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco aprendi duas palavras aparentemente banais, mas que acabaram tendo tanta importância no meu ofício, a palavra liberdade e a palavra justiça. Mas foi no terreno dos esportes que aprendi a disciplina, segredo do modesto equilíbrio desta escritora neste indisciplinado país. Sim, foram aquelas aulas de esgrima que eu amava tanto e ao mesmo tempo, temia, foram elas que me ensinaram a dura lição do desafio de exigir rapidez de raciocínio a alguém assim de reações demoradas, lentas, Uma tartaruga! ouvi minha mãe gracejar. Contudo, como me sentia feliz naquele uniforme todo branco, a túnica fechada e o coração de feltro vermelho pregado no lado esquerdo do peito. O professor provocava e investia enérgico nos treinos, máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio das ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito desguarnecido! Eu reagia tarde demais porque ele avançava implacável até tocar com a ponta do florete no meu coração exposto.
Ficou a lição de cobrar de mim mesma uma energia que também é malícia, aquela força acumulada lá no fundo e que hoje eu chamo de minhas reservas florestais, enfraquecidas pelo desmatamento. Nesse tempo eu já falava em vocação e que vem a ser a vontade de fazer isto e não aquela outra coisa eventualmente mais proveitosa e até mais fácil: vocare, aprendi nas aulas de latim. O chamado. Obedecer a esse chamado é uma destinação, mas não a condenação que implica perda de liberdade, na perda entraria o amargor, o que transformaria o escritor numa esponja de fel. Obedecer à vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria quando diante da pequena mesa abria o meu estojo com as canetas, escolhia a pena preferida, molhava a pena no tinteiro e começava a escrever as minhas histórias. Mas tomando cuidado para não sujar os dedos da mão direita, ih! olha aí as nódoas de tinta nos dedos, esfregar o mata-borrão melhorava mas cuidado com a blusa!
Quando me perguntavam o que eu queria ser respondia, Uma escritora. Mas não falava em vocação, tinha pudor em assumir o ofício, falar em vocação não poderia parecer arrogância com um toque até de soberba? Só mais tarde é que fui compreendendo, na vocação não está incluído o sucesso, ah! tantas vocações fulgurantes e a obra na maior obscuridade. O silêncio, ninguém leu? ninguém viu. Melhor se tiver repercussão, mas na realidade o que importa é obedecer ao impulso. O chamado. Nenhuma preocupação com os penachos da vaidade mas prosseguir o trabalho com paciência, o aprendizado da paciência.
Não sei como será a vida de um escritor de outras terras, outras gentes mas sei da vida desta escritora neste país, testemunha deste tempo e desta sociedade. Pisando na realidade do analfabetismo e da miséria. Passei muito tempo participando do que chamo de verdadeira cruzada, ia a universidades, centros de cultura, bibliotecas e repetindo sempre, O dia em que tivermos mais creches e mais escolas teremos menos hospitais e menos cadeias. Adiantou? - alguém pode perguntar. Pelo visto, não adiantou mas respondo com Camões, Estou em paz com a minha guerra.
Uma guerra dura, sim, afinal escrevemos em português, língua desconhecida, ai de nós! embora o nosso estilo ou modo seja no charmoso feitio brasileiro. O poeta Olavo Bilac, já naquele tempo escreveu estes versos sem ilusões, Última flor do Lacio, inculta e bela/ És, a um tempo, esplendor e sepultura. Olha aí, uma verdade que me parece terrível, esplendor e sepultura, foi o que ele disse. Ainda bem que acrescentou em seguida: Amo-te assim, desconhecida e obscura. Pois participo dessa declaração de amor que inclui uma luta que me parece, às vezes, a própria luta de boxe. Por acaso vi na televisão dois homens se atracando e se separando, se atracando e se separando. Sim, o escritor e a palavra na luta que Carlos Drummond de Andrade achava que era uma luta vã. O boxeur lá na tela se agarra ao adversário para não cair, o assessor quase joga a toalha mas o boxeur resiste tão empenhado, vertendo sangue (o pensamento verte sangue) mas resistindo.
Apesar de tudo, a esperança. Disse um dia que se tivesse uma bandeira essa bandeira teria duas cores, o verde da esperança (a única cor que amadurece) e o vermelho na outra metade, a cor da paixão com as suas cintilações de cólera.
Amo o sonho. A invenção. Escrever é difícil, sim, aquele duro corpo-a-corpo com a palavra mas assim que entro no imaginário, na fantasia me sinto bem porque essa é a zona do mistério, a criação literária é um mistério.
Alguns dos meus textos nasceram de uma simples frase ou de uma imagem, algo que ouvi (ou apenas vi) e retive na memória, essa incompreensível faculdade da memória e Sem a qual eu não poderia pronunciar o meu próprio nome, escreveu Santo Agostinho.
Outros contos (ou romances) nasceram de algum sonho, enfim, a maior parte dos meus trabalhos deve ter origem lá nos emaranhados do inconsciente — zona vaga e imprecisa como o fundo do mar. Impossível determinar as fronteiras do criador e da criação, os limites do imaginário e do real. Minha obra tem um certo travo de amargor? Creio que não, anoiteço às vezes, como toda gente mas de repente espero pela manhã com seu bíblico grão de acaso, de loucura. E de imprevisto.
Escrevi no livro A disciplina do amor que o escritor no Brasil é uma espécie em extinção mas vejo hoje que a espécie em processo de extinção é o leitor. Em cada esquina agora tem um novo editor com os escritores num delírio de lançamentos, sim, um verdadeiro porre de livros. E por onde anda o leitor fugidio, hein?... Li outro dia num noticiário que um esquartejador confesso dispensou o advogado porque queria mesmo ser preso para poder escrever as suas memórias na paz do presídio. Com tarde de autógrafos.
Em Salvador vi num antiquário a imagem de um anjo de botas vermelhas, manto azul esvoaçante e levando na mão direita um archote. Longo tempo fiquei olhando o belo anjo de olhar doce mas firme, empunhando aquela tocha acesa, a chama subindo em ondulações douradas. Um Anjo Tocheiro? Um Anjo Tocheiro que eu gostaria de ter hoje para iluminar o meu caminho.
*Texto publicado na Revista Língua Portuguesa n° 22, agosto de 2007, e no livro de crônicas “Conspiração de Nuvens”, Editora Rocco, 2007.
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