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Mostrando postagens de fevereiro, 2008

Os tormentos da página em branco*

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Dicas que os escritores costumam seguir para contornar o bloqueio criativo que volta e meia os ataca por Geraldo Galvão Ferraz Você e a página em branco. Ela até parece aumentar, esperando as palavras que você colocará nela. Mas, como acontece com muita gente, você pensa, pensa e nada. A página continua branca. Você tem mais ou menos a idéia, digamos, de um conto, mas como começar? Principiar um texto pode ser, às vezes, um tormento. As palavras parece que não vêm, os pensamentos se misturam na cabeça e nada faz sentido. E a página, lá, branquinha. Esperando. O escritor que trava para começar seu texto, sobretudo o de ficção, não tem, é bom que se diga de cara, uma solução fácil para o problema. Cada escritor tem seu jeito próprio de lidar com esses demônios, que podem ser causados pelo cansaço físico ou mental, pelo ambiente que o cerca (se você não teve a experiência de tentar escrever ficção num lugar cheio de crianças gritando e chorando, não a queira ter). O que fazer? Bem, de iní

Ligeira, sim; superficial, não*

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Pelo caráter absolutamente original da crônica brasileira, gênero merecia maior reconhecimento por Luiz Ruffato Ainda hoje há certa resistência em compreender a crônica como gênero literário específico. Esse equívoco talvez possa estar assentado num preconceito e num estereótipo. O preconceito advém de sua dupla origem plebéia: nascida nas páginas dos jornais, veículo utilitário e descartável, é cultivada em troca de um salário no final do mês. Nada mais abominável para aqueles que imaginam um ofício aristocrático para as letras... Já o estereótipo é aquele que reduz a crônica a “um comentário ligeiro a respeito de assuntos cotidianos, vazado numa linguagem simples e direta”, como se “ligeiro” fosse sinônimo de “superficial”, “assuntos cotidianos” fossem “irrelevantes” e “linguagem simples e direta” equivalesse a “linguagem pobre e reducionista”. No entanto, pelo caráter absolutamente original da crônica brasileira, que em seus melhores cultores alcança excelência de estilo e força de

Receita

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Recolha uma mão cheia de lágrimas e sorrisos frescos. Anote um punhado de pequenas e grandes dores. Registre, em letra miúda, sofrimentos extremos e acrescente uma dose farta de incontroláveis alegrias. Peneire o fermento, misture bem e deixe descansar à sombra. Junte uma porção de frases inesperadas, como: “Se precisar de mim, não conte comigo”; “Pode ir embora à vontade”; “Como assim, sozinha?”. Adicione uma pitada de sal, outra de açúcar e uma colher de cravos-de-cheiro. Bata até adquirir consistência. Reserve para o recheio. Apanhe uma série de imagens fugidias. Sugestões: um rapaz de uma perna só, de muletas, que leva uma caixa de engraxate no ombro. Um homem manco que baila na faixa de pedestres. Um velho que se aposentou e passeia sozinho pelo shopping. Uma mulher que perdeu o filho. Um menino que deseja um amigo. Alterne em camadas e cubra com suspiros. Aqueça vozes solitárias em fogo brando. Pegue uma saudade nunca apaziguada, recorte-a em tiras finas e derrame angústias úmida

Dentro do coração selvagem

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Robson Oliveira O fim da tarde chegava e com ela um pôr-do-sol que tingia o horizonte ocidental, com esplendorosas cores em fuga, permitindo ao azul do céu mesclar com o negro da noite, formando um imenso manto azul-celeste, com tímidos pontos cintilantes de estrelas que surgiam ao longe. Um grupo de viajantes cansados chegou à savana, juntando-se em roda naquele crepúsculo em que a brisa anunciava uma noite agradável depois do escaldante calor do dia. Eles estavam na aurora dos tempos e a vida continuava a dar seus primeiros passos e havia tanto a ser descoberto, criado e construído. Era inevitável não se deslumbrar com tudo, afinal, tudo era tão grande, assustador e novo. A dimensão colossal do horizonte escondia da vista lugares secretos prontos para serem desbravados. Tão maravilhosas eram as imensas colunas de montanhas ao longe, cobertas por majestosas nuvens brancas, que chegava a assustar os pequenos corações. Quando do grupo se aproximou e uniu-se a ele o mais velho, e mesmo c

Homo Simius

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Chego ao restaurante natural um pouco antes do meio-dia. Está vazio e há várias mesas desocupadas. Carrego quatro livros para devolver à Biblioteca e uma pasta cheia de papéis. Escolho um lugar no canto e os deixo lá antes de pegar a fila. À minha frente, um grupo conversa com entusiasmo, ignorando a recomendação de não falar próximo aos alimentos. Cinco amigos de terno escuro debatem gestão de carreira. Absenteísmo, rotatividade e síndrome da exaustão flutuam cheios de germes sobre a comida. Depois de pesar o prato, me dirijo à cadeira que escolhi. Para meu espanto, meus objetos foram trocados de mesa. O lugar foi ocupado por um dos cinco amigos, que está de costas para mim. Espero o pedido de licença ou desculpa: — A senhora se importa em mudar de lugar? Queremos ficar juntos. Ou: — Desculpe-me, tomei a liberdade de mudar suas coisas para me sentar junto de meus amigos. A senhora se incomoda? - ao que, provavelmente, eu responderia: — Não, tudo bem. Bom apetite! - E tudo estaria em

Meditações sobre Estela

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Robson Oliveira Os primeiros acordes do piano romperam o silêncio da sala, com uma bela melodia que parecia soar das fagulhas da lua, que meu reflexo reproduzia nas paredes como se fossem pirilampos estáticos. Acordando- me de um profundo sono. Uma criança entra na sala com um gato em seu braço e no outro arrastava um cobertor, interrompendo o belo prelúdio com seu dengo. Com voz embargada e olhos marejados, dizia sentir falta da mamãe. O homem põe a criança no colo, declarando também sentir saudade dela. Mas o que será saudade? Será que somente humanos sentem saudade? Acredito nunca ter refletido essa tal de saudade. Confortada nos braços do pai, a criança pergunta-lhe se o gato de sua mãe também sente saudade. O pai, com um sorriso, responde: quando miar, é porque ele também está com saudade. E como é a saudade? Insiste o garoto, deixando o gato escapar para o corredor. O pai pondera e diz que muitos sentimentos poderiam ser explicados pelas cores: enquanto o verde significa a espera

Amém!

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Ainda estava escuro quando o grito de mulher acordou a vizinhança. Logo em seguida, as batidas frenéticas na janela do quarto: — Dona Loíde, corre! É o Menino! Levantou-se assustada e abriu a janela apesar do vento gelado. — O que foi, Dona Maria? A cara preta estava transtornada. — É o Menino! Quebraram as pernas dele! Ele não anda, coitadinho... Meio tonta, vestiu um casaco e correu para a casa ao lado. Menino estava quieto, em cima do sofá. Parecia dormir. Dona Maria o pegou no colo e o pôs no chão para que andasse. Ele não se mexeu. — Vem pra mamãe, vem! - Ela disse, agachando-se, mas não adiantou. Pegou-o de novo, com carinho, e tocou suas pernas finas e moles — pareciam realmente quebradas. — Vamos para o pronto-socorro - decidiu a vizinha, conhecida pelo coração bondoso e pela calma que sempre mantinha em situações de emergência. Vestiu-se rápido e ligou para o ponto de táxi, mas o Sr. Afonso, único taxista na cidade, não acordou do sono profundo. — Pega a bicicleta

Perfídia

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Liana Ferreira Estás a imaginar coisas... Não te dou motivos para não confiares em mim. Não sabes que eu te amo? Por que eu ia perder o meu tempo com envolvimentos sem futuro, se escolhi ficar contigo. Bentinho, cabisbaixo, apoiava a cabeça com a mão direita, polegar embaixo do queixo e indicador deslizando por sobre os lábios. Sentado na poltrona, permanecia calado, seu olhar perdido no vazio. Não tinha sorte com as mulheres. Fora sempre assim. Capitu não o tinha traído descaradamente com seu melhor amigo? Cresceram juntos, contavam com a guarida de suas famílias, mas a pequena era ardilosa e ele não tivera um só dia de tranqüilidade conjugal. Melhor que tivesse continuado sozinho — pensava ele - mas deixou-se envolver desgraçadamente pela beleza de Luísa. Minha mãe, D. Glória é que estava certa. Eu deveria ter sido padre! Casei-me com Capitu e tive que amargar a desventura de criar o filho alheio como se fosse meu, e testemunhar o choro copioso de minha mulher, diante do corpo sem v

Promessa

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No dia 7 de julho de 2007, após consultar o horóscopo ( Capricórnio: Fase propícia para o resgate de emoções contidas. Viagens potencializadas .) e a numerologia ( 7: número sagrado, simboliza a totalidade, a plenitude, a perfeição .), tomei coragem e adquiri duas passagens de ônibus para minha cidade natal, que eu não visitava há trinta anos. Parte da família já fora de carro e nos aguardava na casa da minha tia para sete dias de férias. Na rodoferroviária suja, comprei de um suposto surdo-mudo, por 7 reais, uma medalhinha de São Cristóvão para nos proteger na viagem. Segurei-a durante todo o trajeto, enquanto meu filho dormia tranqüilo na poltrona ao lado. Funcionou: chegamos, ao nascer do dia, a salvo de acidentes ou roubos, e fomos recebidos na rodoviária pequena e limpa. Um breve descanso, um farto café da manhã na mesa da cozinha e dei início à visita ao passado que eu tanto adiara, com medo de confrontar lembranças tão antigas. Sob a escolta do bravo e leal exército reun

O Quebra-Cabeças

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Liana Ferreira As peças tantas vão-se amontoando em minha frente numa desordem monumental e eu me sinto perdido. Ligeiramente tonto, percebo o tamanho da tarefa que preciso executar. Juntar estas peças todas e organizá-las em um quadro perfeito será minha derradeira ocupação e me dedico a esse trabalho com devotamento. Pegando em cada pedaço, atentamente, vejo descortinarem-se as histórias que vivi e, perplexo, concluo que na maioria das vezes contentei-me em ser coadjuvante onde teria que ser o ator principal. Custo a reconhecer-me em algumas cenas, desconfio de alguns cenários, duvido de algumas imagens. Elas não parecem reais, recriam a mesma coisa inúmeras vezes sem produzir nada de novo, substancial. Montando o quebra-cabeças, persigo a minha verdade e almejo desnudar as ilusões. Temos sempre tantas ilusões acerca de nossas vidas... Com indisfarçável inquietação revejo o meu passado: semanas, meses, anos, o tempo implacável desfilando diante de mim, soberano, vitorioso. Tento-me c

Bravo!

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— Você gosta de Fernando Pessoa? - perguntou a diretora, na porta da sala. — Adoro! - ele respondeu, olhando-a bem nos olhos, conforme aprendera no curso de Comunicação Assertiva. — Então, conto com você no sarau hoje à noite. — Com prazer. - Ela saiu, satisfeita, para convidar os demais funcionários. O cargo de Chefe de Recursos Humanos estava em aberto e ele era o mais bem cotado para assumi-lo. Certificou-se de que a diretora se afastara antes de abrir a Internet. Desanimou com o número de ocorrências para “Fernando Pessoa”: 2.810.000, em várias línguas. Um simples cantor de fados? Acessou a Wikipédia e, para sua surpresa, descobriu que não se tratava de um cantor, e sim de um grande poeta português. Tentou fazer algumas associações: Pedro Álvares Cabral, piadas de português, dentistas brasileiros... Não foi além disso. Imprimiu a página para ler durante o almoço e talvez decorar as informações mais importantes. Já estava no corredor quando se lembrou da outra palavra que desconheci

No Restaurante

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Liana Ferreira São vinte e duas horas e o restaurante tem poucas mesas disponíveis para o jantar. É quarta-feira, o coração da cidade bate acelerado e só um ouvido muito atento conseguiria captar as conversas embaralhadas que se multiplicam no recinto. Algumas palavras aqui e ali, misturadas com as de outras mesas, não fazem o menor sentido. Risadas vindas de trás e cumprimentos à chegada forçam-me a virar para olhar e, então, resolvo mudar de mesa. Escolho uma posicionada estrategicamente para que nada fique fora do alcance dos meus olhos. Na mesa mais próxima, um casal janta em silêncio. Têm aproximadamente 60 anos e muito dinheiro, a julgar pelo vinho que estão bebendo. Comem como se cumprissem uma tarefa enfadonha. Seus olhares, quando se cruzam, muito rapidamente, não deixam transparecer nenhum clima de romance. Mas são casados. Ostentam com orgulho desmedido um par de grossas alianças compradas nessas lojas de preços obscenos. Comem sem pressa. Trituram o alimento entre os dentes