Meditações sobre Estela

Robson Oliveira







Os primeiros acordes do piano romperam o silêncio da sala, com uma bela melodia que parecia soar das fagulhas da lua, que meu reflexo reproduzia nas paredes como se fossem pirilampos estáticos. Acordando- me de um profundo sono. Uma criança entra na sala com um gato em seu braço e no outro arrastava um cobertor, interrompendo o belo prelúdio com seu dengo. Com voz embargada e olhos marejados, dizia sentir falta da mamãe.
O homem põe a criança no colo, declarando também sentir saudade dela.

Mas o que será saudade? Será que somente humanos sentem saudade? Acredito nunca ter refletido essa tal de saudade.
Confortada nos braços do pai, a criança pergunta-lhe se o gato de sua mãe também sente saudade. O pai, com um sorriso, responde: quando miar, é porque ele também está com saudade.

E como é a saudade? Insiste o garoto, deixando o gato escapar para o corredor. O pai pondera e diz que muitos sentimentos poderiam ser explicados pelas cores: enquanto o verde significa a esperança e o laranja expressa a alegria, o azul seria a saudade que, vasta como o céu, seria impossível ser comprimida. Isso mesmo! Nada de preto nada de branco, somente o azul, essa é a cor da saudade. A criança pareceu entender o seu significado, embora para mim não tenha nenhum sentido.

Chamo-me espelho de Estela, e ao contrário do que pensam sobre nós, espelhos, somos andróginos, não masculinos.

Fico numa parede e reflito um piano e parte de um grande vitral, coberto por uma cortina escarlate com motivos dourados, que quebra algumas vezes a quietude do ambiente com meneios causados pelo toque da brisa. Poucas pessoas entram na sala, em razão do quê grande parte do tempo permaneço como uma peça de ornamento, sem vida nem reflexos. Mas possuo percepção impecável, nada foge à minha vista, nem mesmo os mais sorrateiros ou ínfimos movimentos escapam à minha vigília.

Será que a saudade já passou por aqui e eu não a vi? Impossível! Saberia se passasse.

A faxineira entra na sala para as tarefas pouco costumeiras naquele ambiente, passa um pano em minha face, contemplando seu rosto. Isso é angústia! Olhar distante e pouco atenta ao que faz. Não sei o que será de mim sem esse emprego. Ela me dá as costas, deixando sua dúvida comigo. Roxa. Essa é a cor da angústia.

Não demorou para que outra pessoa entrasse na sala, um senhor, que veio buscar uma pequena mesa de centro e, ao passar diante de mim alisa a barba por fazer. Não acredito que essa casa será vendida. Ele sai rumo ao corredor, deixando sua surpresa comigo. Vendida? Lilás é a surpresa.

Reflito não só um mundo de imagens e representações. Como poucos, sou conhecedor do âmago humano e, quiçá, o mais perspicaz de todos na face da terra, não fosse pela tal da saudade, pois percebo além dos reflexos, seguindo por caminhos miméticos e contemplando o artificial e fantástico mundo dos homens, concebido pelo plano das idéias de seu imaginário. É como você estivesse se vendo, através dos olhos de outra pessoa. Transparente é a perspicácia.

Os dias se passaram e novamente desperto de meu torpor com vozes pela sala. Um casal nos visita e demonstra interesse em comprar a casa. E, como sempre, sou irresistível para mulheres. Espero que esse idiota compre esta casa, é grande o suficiente para eu não ficar próximo a ele o tempo todo. Sentindo seu cheiro insuportável que nem os perfumes mais caros conseguem dissimular. Estou tão linda! É um desperdício, para não dizer um absurdo, uma mulher como eu ser usada por um grosso e nojento. Em compensação, o dono da casa é um charme. Será que é casado? Isso não tem nenhuma importância. Luxúria, a cor escarlate. Ela me dá as costas, enchendo seu marido de beijos dizendo que o amava e que adorou a casa. O homem de meia idade passa a minha frente e percebe que o batom de sua esposa tinha lhe borrado os lábios. Ele se aproxima de minha côncava face sem saber que será revelado, esfregando as costas da mão sobre a boca. Que nojo! Se não fosse pela presidência da empresa não estaria com essa mocréia fazendo seus gostos, e o melhor, não precisaria me encontrar às escondidas com o Roberto. Ele se distancia, dando o braço a mulher, seguindo rumo ao corredor. Hipocrisia, tonalidade indefinida mesclada com a luxúria, resulta na combinação fatal de coloração bordô.

A sala fadada ao vazio de sentimentos novamente cumpre seu papel, quebrado momentaneamente por uma borboleta de coloração vibrante. Há em suas asas muitas cores das emoções humanas, talvez haja também a saudade, voando para fora da janela junto ao fibrilar das asas para estar em muitos lugares, indo e vindo sem convite, mas nunca se aproximando de mim.

Nos dias seguintes, outras pessoas visitaram a casa. Pude refletir infinidades de emoções num variável arco-íris descompassado: o vermelho paixão, a avareza do marrom, a doçura do rosa, a tristeza do preto, o vazio do branco, menos o azul da saudade.

A noite cai, e com ela uma forte dormência, misturada a um desejo forte de cor verde-escuro de conhecer a saudade. Talvez a encontrasse nos sonhos, caso nós espelhos, sonhássemos.

Os primeiros acordes do piano romperam o silêncio da sala, com uma bela melodia que parecia soar das fagulhas da lua, que meu reflexo reproduzia nas paredes, como se fossem pirilampos estáticos. Acordando- me de um profundo sono.

Sobre meu reflexo, a imagem de um homem ao piano transmite em sua música o tom preto da tristeza, em compasso com o vazio do branco. Estela!!! Esse é o nome que vem à sua mente, acompanhado de uma explosão de sentimentos multicores: o cinza da solidão, a lembrança, de tom amarelo- claro fugido com madeixas de um verde esperançoso. Espere... não é dor de cor inconstante ou solidão acinzentada, mas é também dor e solidão misturadas a um frenesi de cores, regidas pela sublime lembrança. Lembranças amiúde corriqueiras, esquecidas pela carruagem cor de prata da morte, que levara Estela para o mundo do branco vazio, deixando apenas um rastro da triste cor. Se dissesse que é uma esperança às avessas, teria entendido melhor.

Uma criança entra na sala com um gato em seu braço e no outro arrastava um cobertor, interrompendo o belo prelúdio com seu dengo. Com voz embargada e olhos marejados, dizia sentir saudade da mamãe e em seguida, o bicho gato miou. Com a leveza de uma brisa, eis que surge uma suave dor nos corações maculados, fazendo aos poucos dissipar as demais cores, permitindo-as apenas que ressoassem como num término de uma orquestra, prevalecendo a lembrança e a esperança, o amarelo e o verde, unindo-se em prol de uma nova cor. Enfim, entendo a saudade, nada de preto, nada de branco. Simplesmente o azul.






Robson Souza de Oliveira, brasiliense Bacharel em História, desenvolve pesquisa relacionada aos mitos e suas influências nas instituições seculares de governo.




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