Perfídia
Liana Ferreira
Estás a imaginar coisas... Não te dou motivos para não confiares em mim. Não sabes que eu te amo? Por que eu ia perder o meu tempo com envolvimentos sem futuro, se escolhi ficar contigo.
Bentinho, cabisbaixo, apoiava a cabeça com a mão direita, polegar embaixo do queixo e indicador deslizando por sobre os lábios. Sentado na poltrona, permanecia calado, seu olhar perdido no vazio. Não tinha sorte com as mulheres. Fora sempre assim. Capitu não o tinha traído descaradamente com seu melhor amigo? Cresceram juntos, contavam com a guarida de suas famílias, mas a pequena era ardilosa e ele não tivera um só dia de tranqüilidade conjugal. Melhor que tivesse continuado sozinho — pensava ele - mas deixou-se envolver desgraçadamente pela beleza de Luísa.
Minha mãe, D. Glória é que estava certa. Eu deveria ter sido padre!
Casei-me com Capitu e tive que amargar a desventura de criar o filho alheio como se fosse meu, e testemunhar o choro copioso de minha mulher, diante do corpo sem vida do amante, e agora....
Casei-me com Capitu e tive que amargar a desventura de criar o filho alheio como se fosse meu, e testemunhar o choro copioso de minha mulher, diante do corpo sem vida do amante, e agora....
Esqueça a Capitu, Bento Santiago! Agora somos nós dois.
Luísa Mendonça Brito de Carvalho ajoelhou-se aos pés de Bento e acariciava-lhe as pernas enquanto falava baixinho:
Meu amor, eu já paguei muito caro pelos meus erros de juventude e aprendi a lição. Se eu traí o Jorge, e realmente o traí, foi somente porque eu era demasiado jovem e ele me deixava por longos períodos sozinha, mergulhada naquele mundo de futilidades. Deus é testemunha do meu arrependimento e você precisa me entender.
Para mim, não é fácil acreditar...
Meu querido, esqueça o que se passou. Minha vida hoje é muito diferente da que eu levava no meu primeiro casamento. És uma pessoa diferente. És inteligente, me cobres de atenções. Sugeres-me boas leituras. Lembre-se de que eu só lia romances açucarados e ficava sonhando pelos cantos desejando ser Margarida Gautier e ter um amor naqueles moldes, achando a minha vida uma sem-gracice.
Se tenho pena do meu antigo marido, tenha mais pena de mim. Tive que suportar tantos tormentos: a vida insossa e invernal da burguesia lisboeta; a humilhante condição de ter que servir como escrava, atendendo aos caprichos desmesurados de uma reles serviçal, e a constatação tardia de ter sido usada por um homem sórdido. Padeci dores cruéis. Dores do corpo e da alma. Não fui capaz de resistir às adversidades e sucumbi, vítima da chantagem e dos maus tratos de uma tirana e do abandono e indiferença do meu astucioso primo.
E não eras apaixonada por ele?
Luísa levantou-se e foi até a janela. Olhou melancolicamente para a lua nova que brilhava no céu e deixou que as lágrimas caíssem fartas sobre sua face. Então falou:
Na verdade, Bentinho, nunca amei verdadeiramente outro homem que não a ti. Casei com Jorge para não ficar solteira, como era costume naquela época e desejo de toda moça. Jorge também estava longe de ser um marido apaixonado. Fez um casamento de conveniências. Resolveu se casar logo após a morte de sua mãe porque sentia-se muito sozinho e com a sua vida desorganizada...
Eu te perguntei sobre o Basílio!!...
Minha infeliz história com o meu primo é uma fantasia sentimental. Não foi amor verdadeiro. Basílio representava para mim o novo, o moderno, o desconhecido que eu imaginava existir para além daquele grupo de medíocres criaturas que povoavam o meu universo. Basílio tinha sempre estórias exóticas para contar e eu me distraía com elas. Tinha a ilusão de estar escapando do tédio que era aquela minha vida de casada. Ele era sedutor e envolvente e, hoje sei, muito vulgar também. Mas naqueles tempos eu não tinha maturidade para estas reflexões. Caí na armadilha que ele tão bem planejou. O que faltava em mim, sobrava nele: malícia. Aliás, sobrava em todos ao meu redor. E como bem sabes, porque não é a primeira vez que te conto esta história, quando poderia ter encerrado aquele relacionamento que nenhum ganho me trazia, já não havia tempo. Estava sob a mira de Juliana, num beco sem saída, paralisada de medo. Sofrendo uma pressão que não fui capaz de suportar. Havia muita inveja naquela criatura odiosa. Feia, virgem, solteirona e bastarda, ela foi uma algoz impiedosa e eu não podia contar com ninguém, nem comigo mesma.
Sentou-se novamente ao pé de Bento Santiago que escutava em silêncio, ensimesmado e triste. Segurou fortemente as mãos dele e falou:
Eu sou feliz contigo e não quero que nada estrague essa felicidade. Quero que entendas que aquela jovem romântica, ingênua e irresponsável não existe mais. Hoje sou uma mulher madura e não cometeria novamente os mesmos enganos.
Precisas controlar este teu ciúme e afastar estas desconfianças que só te fazem mal, e em mim ressuscitam fotografias inquietantes de um passado que quero esquecido.
Bento Santiago levantou-se da poltrona e caminhou até a porta do quarto arrumando o nó da faixa do roupão. Depois virou-se para Luísa e passando as duas mãos pelos cabelos, disse:
Como posso me controlar se te vejo risonha e falante, sempre cercada de pessoas interessantes a te admirar os modos e a beleza?
Luísa sorriu um sorriso amarelo e sem desviar o olhar de Bento, levantou-se dizendo:
Logo se vê que não tens motivos para duvidares da minha fidelidade. Acaso não acreditas que sou outra pessoa? Que mudei muito nestes anos e que não poderia desejar mais da vida do que o que tenho contigo. A teu lado sinto-me completa e segura. Deixa-te de estórias e vamos dormir, que já é tarde. Amanhã trabalhas cedo e eu tenho terapia às 11.
Ao acordar Bento parecia mais calmo e tinha a alma apaziguada. Sua doce Luísa tinha-lhe proporcionado uma inesquecível noite de amor. Era sempre assim depois de algum desentendimento e sobrava nele essa sensação profunda de que precisava travar uma luta interna se quisesse se libertar dessas delírios sistemáticos, dessas desconfianças que não o deixavam relacionar-se bem com mulher alguma.
Já eram quase 13:00h quando o carro parou em frente ao prédio de escritórios. Luísa olhou para o relógio enquanto aguardava o troco. Desceu com passos firmes e olhou para os lados como se procurasse algo. Atravessou a calçada com cuidado para não enfiar os saltos dos sapatos nos buracos abertos, entrou no prédio sem cumprimentar ninguém e parou em frente ao elevador. Enquanto subia até o 5º andar, soltou os cabelos e os arrumou displicentemente usando os óculos escuros como prendedor.
Ao invés de apertar a campainha bateu de leve na porta com os nós dos dedos quatro vezes. A porta se abriu de imediato e Charles Bovary a abraçou e a carregou até a cama de exames. As mãos dele, afoitas, entravam apressadas pela blusa dela em busca dos rosados mamilos e suas línguas descortinavam um mundo já experimentado de delícias.
Era assim que começavam as tardes de terça.
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