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Mostrando postagens de maio, 2008

De barriguinha pra baixo

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Luci Afonso Após muita insistência, Nalva me convencera a visitar seu amigo Olorico Barbosa, terapeuta naturalista. Conforme a massagista me explicara, ele era hidrologista, quilopata e natopata, isto é, atuava no diagnóstico da íris, destravamento da coluna e controle de peso mediante tratamento fitoterápico. Fiz devagar o longo trajeto a Taguatinga logo de manhã. Quando preciso ir ao médico ou dentista, é um marca-remarca interminável. Dado o passo inicial, porém, sou a melhor das pacientes: obediente, assídua e fiel até a morte. O verdadeiro nome de Nalva, eu acabara de descobrir, era Norvina (o pai, grande pescador, assim homenageara o peixe favorito). Ela já me aguardava no consultório decorado em tons de verde. Uma íris enorme nos observava na parede principal e outras menores espiavam de todos os cantos. Fui apresentada a um moreno baixo e forte, de cabelo preto liso, parecido com o presidente boliviano, Evo Morales. — Estou um pouco nervosa. — Fique tranqüila, paixão - disse el

Nesta terra, também!

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Cinthia Kriemler Assim é, se lhe parece. Se não parecer, ainda assim pode ser. Se não for, não pode parecer. Sexta-feira, fim de tarde. E fim de tarde é quando a noite já começou a colocar as manguinhas de fora, mas ainda não deu permissão às estrelas. O calor que eu sinto me conta que não importa o tempo no relógio: é hora de relaxar. Estou aqui a trabalho e só volto para casa domingo, porque, com a confusão do caos aéreo, os vôos estão superlotados. O pessoal do escritório nem precisou insistir muito para combinar comigo um programa na orla, porque o mar nunca precisou de apelo para me ter por perto. Como aluguei um carro, decidi que posso encontrar sozinha o restaurante. Recusei duas caronas. Quem sai para a noite com a turma do escritório tem duas opções: pegar carona e depender de algum clímax etílico para ir embora, ou ir no próprio carro e ter a liberdade de escapar antes que as línguas comecem a ficar tão enroladas quanto a divisão da conta. E aqui estou eu, sozinha, na porta d

A vida ao rés-do-chão (2)*

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Antonio Candido Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia — políticas, sociais, artísticas, literárias. Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poes

Roupa de época

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Luci Afonso Aproveito a manhã de sábado para alugar a fantasia do sarau. Na Rua das Noivas há uma loja especializada, a Luxo no Lixo, no subsolo do Bloco “A”. Ao descer as escadas, vejo, atrás do balcão, uma máscara de leão assustadora. É a dona da loja, com o rosto inchado após uma cirurgia plástica. — Não repare, fiz esta semana - ela se desculpa. — Quase não dá para ver - tento disfarçar. — A senhora tem uma roupa do século XIX? — Século XIX? Não lembro como era. Você trouxe uma foto? — É do tempo de Machado de Assis. — Ah, aquele da minissérie com a Vera Fischer? — Não, é outro, mas a roupa é parecida. De época. — De época? Por que você não disse logo? Ela me conduz a um cubículo entupido de fantasias. — Esta é uma réplica da minissérie - ela diz, acariciando um lindo vestido vermelho com renda. — Pena que não te sirva. Vou procurar alguma coisa maior. — Pode ser só a blusa. Tenho a saia em casa. — 50 ou 52? — 48. Ela se enfia entre os cabides e me dá algumas blusas. Estou quase co

Vida de flor

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Cinthia Kriemler Se sou, preciso entender como é grande ser. Se não sou, melhor começar a querer ser. É hábito meu antigo apreciar jardins. Eu poderia olhar e me encantar também com o céu, todos os dias, mas o céu às vezes fica tão bravo, tão bravo que se derrete em lágrimas! As flores têm sempre melhor humor. Faço caminhadas diárias, comandadas pelo medo de sentir cessar as batidas do único amigo verdadeiro de uma existência inteira. Não me importo de ser velha ou jovem. Não me impressionam as rugas, a perda de visão gradativa, a imperfeição dos dentes. Para tudo isso, se eu quiser, há remendos humanos. O que me importa é muito mais que um amontoado de pendengas físicas. Eu quero vida! E foi dessa senhora que de nós se separa apenas uma vez que meu coração recebeu avisos para se cuidar. Mas não me basta caminhar e assumir a rotina do passo a passo em frente a casas inertes, prédios-esfinges. Isso me irrita, me fatiga a paciência que já se faz tão curta. Para desfazer esse cansaço que

A vida ao rés-do-chão*

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Antonio Candido “...(a crônica) para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura. Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.” “...o fato de ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase. A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeita

I Estante Itinerante de Escritores do Poder Legislativo Federal

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26 a 30 de maio de 2008

Batismo

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Luci Afonso Escolhemos um domingo branco de maio para a cerimônia. Nossa roupa também é branca e nossos convidados são os poetas. Enfeito-me com colares de cristal transparente e ele, com uma flor no paletó. Vamos cumprir a antiga promessa. Partimos cedo e despertamos a manhã com passos gentis. Não temos pressa. Caminhamos de braços dados e conversamos baixo para não perturbar as árvores. Eu me abandono ao seu braço como uma menina se deixa levar pelo pai. Ao meio-dia, procuramos um lugar fresco para repousar. Estendemos na grama a toalha branca e celebramos com pão, frutas e vinho. A natureza se junta ao brinde: Em meio à folhagem, desponta um trevo de quatro folhas. Uma borboleta azul pousa auspiciosa em meu seio. Ele a captura e a deposita em minhas mãos, cuidadoso como um menino que passa o anel e espera uma prenda. Colho um ramo de margaridas e faço uma coroa para seus cabelos morenos, enquanto o sol acende os enormes olhos castanhos do meu soberano. É noite quando chegamos ao nos

Para, enfim, me deitar na minha alma*

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Cinthia Kriemler Narciso me fiz, ou nasci assim... Certo mesmo é apenas que somos vaidade e desejo, de uma coisa só, de tantas coisas... Somos carne, ou só espelho? Se eu conhecesse o medo, talvez pudesse nomear a sensação que me toma quando essas portas se abrem. Um a um, a dois, em bando eles adentram e iniciam a profanar o que não entendem. Não há consentimento. Defloram. O desaforo que o trabalho quase arqueológico de Vanessa, minha marchande, recebe dessa turba é nauseante. Ela passa meses pesquisando e escavando prédios antigos para assentar neles minhas exposições de forma tão magnífica. E sempre encontra lugares de boa fortuna. Desta vez, por sinal, ela se superou. As colunas dóricas da sala principal são magníficas! Lamento por mim, lamento por ela que o destino de tanta maravilha seja uma reunião de bárbaros. Eu não posso impedi-los de entrar, de percorrer, de perguntar. É imprescindível que os receba, que os entenda, que perdoe a ignorância com que deitam seus olhares e sorr

Que escritora seria eu se não tivesse lido?*

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Marina Colasanti Extraída de mim a leitura, que ser humano eu seria, e que ponto de partida teria para uma escrita? Eu começaria por não gostar de papel, não amar visceralmente qualquer folha de papel, em branco ou escrita. E a não ter aquela sensação, comum a todos os leitores, de que a tipologia está me chamando. O conceito da escrita como salvaguarda do pensamento não estaria implantado em meu viver. Sem saber que cada livro se abre sobre um mundo diferente, eu olharia apenas pela janela, que se abre sempre sobre a mesma paisagem. A leitura me precedeu abrindo portas, fornecendo respostas a perguntas que eu ainda não havia conseguido formular. Se eu não tivesse sido leitora, é certo que precisaria de um talento infinitamente maior para escrever. Não tendo aprendido com os outros a traduzir os fatos em palavras, os sons em palavras, as cores em palavras, o tempo em palavras, a vida e a morte e a alma em palavras, que trabalhoso seria apertar sozinha, uma por uma, todas as cravelhas d

Leituras Dramáticas

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de Marco Antunes 19 de maio, Teatro Caleidoscópio, às 20h. Entrada franca "Rodrigueanas" é um conjunto de pequenas peças, em geral humorísticas. Recebeu este nome em homenagem à grande obra de cenas curtas do dramaturgo Nelson Rodrigues. Vale como homenagem ao mestre do "conto teatral", embora seu conteúdo seja substancialmente diferente do espírito rodrigueano. Escritas como ensaio de gênero pelo, então, jovem autor, a peça foi montada em Brasília nos anos 80 sob o nome "Desculpe foi engano". Marco Antunes é um militante da literatura, professor, poeta, ator. Esse encontro é uma oportunidade de conversar com amigos, atores e autores sobre o texto. A leitura dramática é quase um espetáculo, realizado por atores, favorecendo o conhecimento de textos inéditos e a releitura viva de textos já montados. http://www.teatrocaleidoscopio.com.br/index.htm CLSW 102 Bloco C Galeria - Sudoeste - Brasília/DF.

Dia de Baile

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Luci Afonso “ Das brumas do Nordeste... ” Não sabia direito o que eram brumas, mas tinha lido numa revista e gostava da palavra. Pernambuco era Norte ou Nordeste? Perguntou à tia. — Acho que é Nordeste. - Se não fosse, ficaria sendo, porque precisava da rima. “ Das brumas do Nordeste Voou para o Centro-Oeste... ” Leu em voz alta e achou bom o verso. O que mais sabia sobre ela? Os olhos eram castanhos ou negros, não tinha certeza. Melhor não falar sobre eles. O corpo não era grande coisa. Seria boa de cama? Tinha um Chevette zero, apartamento próprio no Plano, cargo de chefia no Ministério. Costumava receber os amigos para jantar. Dizem que fazia um bobó de camarão!! Acendeu um cigarro antes de continuar. Investira 5 reais num caderno em espiral pequeno, numa caneta Bic azul e em dois Hollywoods. Pediria o dinheiro do ônibus à tia e, uma vez no Flash , não tinha com o que se preocupar: as despesas seriam pagas pelas amigas e talvez já por ela, se tudo desse certo.

A Assembléia das Chaves

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Cinthia Kriemler O melhor de tudo é brincar... Com as pessoas, com a vida, com as palavras. - Eu fecho, eu fecho, me deixa fechar, deixa!!!! – uma vozinha afinada e insistente chama a atenção da Assembléia das Chaves. Interessados em descobrir a dona de tanto berreiro, as outras chaves se viram procurando de onde partiu tanta euforia. - Eu...aqui...eu fecho! Ah, lá está! No fundo, à esquerda de quem entra. Sentadinha ao lado da Chave de Parafuso. Uma chavinha comum dessas, douradinha, gritando como se fosse uma Allen! - Cala a boca, pequena! Coloque-se no seu lugar! - É isso mesmo, calada! - Vamos fazer silêncio aí, criança! – esgoela uma Chave Inglesa esnobe. O alvoroço é intenso. A Chave Mestra, que preside a Assembléia desde que a Chave do Paraíso se aposentou, decide intervir com urgência no desvario das insensatas. - Ordem! Ordem! Eu vou mandar evacuar o recinto! Vou mandar chama

Para mim e para o Otto*

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Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende Nenhuma tarefa é tão pesada como a de pastorear o ser das coisas que a nós se revela. Preciso aprender a trabalhar, com método calmo e transparente amor. Só na medida em que as águas surgem é que elas renovam. Do fluir decorre a fluência. Estou certo de que só o criar alimenta e restaura a capacidade da criação. O preço da graça que recebemos é nos mantermos fiéis a ela, é nos tornamos os porta-vozes dela, nos fazermos a voz dela, a linguagem dela. A graça quer aceder ao mundo através de nossa boca que fala. Fala boca, para que te possas depois calar com dignidade. Fala, para mereceres o silêncio, que vem depois, como a noite vem depois do dia. Fala. Rio de Janeiro, 12/6/1962 *Trecho de bilhete publicado em “Lucidez Embriagada”, Editora Planeta do Brasil, 2004.

Istrogonofe com safrão*

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Luci Afonso — O que tem de almoço, Ana? — Fiz istrogonofe, Ci. — Por que está amarelo desse jeito? — Tava muito branco, pus um pouquinho de safrão. — Oba! Você fez mousse de chocolate? — É arroz doce, Ci. O açúcar parece que queimou demais. — O baixinho almoçou? — Igual um leãozinho. — Ele comeu o strogonoff desse jeito? — Não, ele quis núguets com molho babicu. E um copão de Coca-Cola! — Levou o quê de lanche? — Orkut e chips. —Tem café novo, Ana? — O pó acabou, Ci. O coador também. — Vai lá comprar. Estou doida para tomar um café. — Tem outro problema. — Qual? — Vieram cortar o gás. — Por que você não me ligou? — Não gosto de incomodar a Ci. O moço disse que se pagasse na hora, não cortava. — Ai, ainda bem! Você pagou? — Não tinha mais dinheiro. — E o que eu deixei, Ana? — Gastei na floricultura. Ci gostou das gerbras, gostou? *Texto republicado em homenagem à memória de Ana Cleide Lima e Silva, que faleceu anteontem, aos 3

A Maldição

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Mônica Thaty Não sei como aconteceu. Era para ser uma linda manhã de primavera. Mas acordei e percebi que tinha virado a minha mãe. Eu, uma jovem e promissora advogada, reduzida a uma dona-de-casa com três filhos egocêntricos e um marido acomodado? Eu, que tinha um futuro brilhante pela frente, passar os dias areando panelas, lavando vidraças, guardando roupas espalhadas pela casa? Sim, aconteceu. Inexplicavelmente, como eu já disse. E, confesso, entrei em pânico. Olhar aquela imagem no espelho e não me reconhecer. Aquelas rugas todas ao redor dos olhos e da boca. No pescoço! Aquelas dobras a mais na cintura. As varizes que formavam um suave mapa hidrográfico nas minhas coxas outrora malhadas e com a penugem dourada de sol. Eu queria meu corpo de volta, meus pensamentos, minhas vontades. Como havia acontecido aquilo? A resposta era óbvia. Se eu estava no corpo de minha mãe, ela deveria ter entrado no meu. Não é assim que acontece no cinema? E como ela deveria estar? Coitadinha! Talvez

Muito prazer: notas para uma erótica da narrativa*

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Ana Maria Machado “Por exemplo, a questão do prazer de ler. (...) Essa expressão geralmente tem sido confundida e deturpada. Não significa que uma leitura tem que dar prazer no sentido de ser divertida, leve ou engraçada, gostosinha, capaz de distrair e fazer passar o tempo. Esse prazer nada tem a ver com um consumo passivo da escrita, mas está associado a algo ativo, uma atividade a dois, encontrando-se num jogo entre autor e leitor, em que o texto do primeiro desperta um possível texto do segundo, até então latente, e capaz de recriar a obra escrita e lida. Desencadeia-se uma troca interativa a partir de um contato sedutor.” “Se um texto dá prazer é porque foi feito no prazer do processo da escrita (o que não elimina a possibilidade de ele ter sido escrito na dor, os conceitos não são excludentes). Mas o prazer do escritor não garante o do leitor, até mesmo porque não se sabe quem vai ser esse leitor; ele precisa ser procurado, seduzido. (...) Um leitor não gosta de um texto ao acaso