A Maldição



Mônica Thaty

Não sei como aconteceu. Era para ser uma linda manhã de primavera. Mas acordei e percebi que tinha virado a minha mãe. Eu, uma jovem e promissora advogada, reduzida a uma dona-de-casa com três filhos egocêntricos e um marido acomodado? Eu, que tinha um futuro brilhante pela frente, passar os dias areando panelas, lavando vidraças, guardando roupas espalhadas pela casa? Sim, aconteceu. Inexplicavelmente, como eu já disse. E, confesso, entrei em pânico. Olhar aquela imagem no espelho e não me reconhecer. Aquelas rugas todas ao redor dos olhos e da boca. No pescoço! Aquelas dobras a mais na cintura. As varizes que formavam um suave mapa hidrográfico nas minhas coxas outrora malhadas e com a penugem dourada de sol. Eu queria meu corpo de volta, meus pensamentos, minhas vontades. Como havia acontecido aquilo?

A resposta era óbvia. Se eu estava no corpo de minha mãe, ela deveria ter entrado no meu. Não é assim que acontece no cinema? E como ela deveria estar? Coitadinha! Talvez em choque, catatônica.

Não, não. Conhecendo bem a mamãe, era mais provável que estivesse dando risadas. Vestindo as minhas melhores roupas, aproveitando a carreira que ela havia abandonado e cumprindo, finalmente, a vingança que havia me prometido durante toda a minha vida: “Um dia você vai estar no meu lugar e aí vai ver o que é bom.”

Resolvi agir com cautela, até descobrir o que realmente havia acontecido. Preparei o café da família em silêncio, e continuei muda durante a refeição. Ninguém percebeu. Aliás, mal perceberam que eu também estava à mesa. Eu e a geléia de amora nos fizemos companhia. Lição aprendida com mamãe: tornar-se invisível mesmo presente. Dom que fez com que ela ouvisse muitas conversas indevidas e descobrisse coisas que pretendíamos manter em segredo.

Esperei todos saírem para decidir o que fazer. Após as mais variadas especulações, concluí que havia sido um feitiço de minha mãe. Não havia outra explicação possível. Sempre desconfiei que ela era uma bruxa disfarçada, com todas aquelas sopinhas e chazinhos que curavam qualquer doença. E aquele suspeito chocolate quente, capaz de fazer desaparecer qualquer dor de cotovelo? Bem, se havia sido obra dela, então eu estava sozinha nessa. Mas não iria dar a ela o gostinho da vitória. Vou assumir seu lugar, mamãe. E provar que posso ser ainda melhor do que você.

O primeiro dia correu tranqüilo. Varri, passei, lavei, arrumei, enxuguei, guardei, lustrei, encerei. E à noite, o que ganhei? Meu... Marido? Aquele homem que eu mal reconhecia — e com quem nunca teria casado em meu estado normal, tenho certeza — perguntou assim que entrou em casa: “O que tem pro jantar?”

Pedimos pizza.

No segundo dia, quando abri os olhos e percebi onde estava, quis voltar a dormir. Esperar, como a Bela Adormecida, que o príncipe encantado aparecesse. Cem anos em paz. Mas meu querido filho caçula entrou no quarto. “Mãe, tenho jogo hoje. Você viu meu meião? E a chuteira? Você vai me levar, né, mãe? Manhêeeeee! Levantaaaaa!”

No terceiro dia levantei-me sem esperar pelo despertador ou pela invasão do quarto. Fui sorrateiramente até o escritório e liguei o computador. Digitei “troca de corpos” no site de busca. Dois mil e noventa resultados. Refinei a pesquisa. “Feitiço para troca de corpos”. Nada. Tudo bem, menos específica. O filho do meio entrou no escritório. Pesquisa interrompida.

— Mãe, tenho que imprimir um trabalho pra escola.

OK. O pai quer saber cadê a gravata marrom. OK. Você faz vitamina? OK. Você compra meu uniforme novo? OK. E lava meu tênis? OK. OK. OK. Cheguei a ver o sorriso sarcástico de minha mãe e ouvir sua voz cheia de malícia. “Cansada, querida?” Não, mamãe, você ainda não venceu.

Se os três primeiros dias foram difíceis, o quarto foi desastroso. A jarra da cafeteira quebrou. Esqueci o vencimento das contas e tive que enfrentar a fila de dois bancos diferentes. O jantar queimou. E eu, exausta, só queria sentar na frente da televisão e planejar minhas próximas férias. Cancún. Precisava de sol, praia. Talvez o nordeste mesmo. Um bom resort. Sem camas para arrumar. Sem roupa para lavar. Café da manhã pronto. Almoço de frente pro mar. Jantar sem hora marcada... Perguntei ao marido para onde iríamos nas férias. “Pirapora, visitar a minha mãe. Esqueceu?” Eu tinha que reverter o feitiço antes do Natal.

Eu marcava os dias como os prisioneiros contam o tempo de detenção. E eles se transformaram logo em semanas. Duas, três, quatro. Eu não era mais do que uma sombra de mim. A cada saída para ir ao mercado ou à feira, eu pensava em fugir. Correr para a liberdade, como um preso que vê o portão deixado descuidadamente aberto. Mas desistir seria dar o braço a torcer. Admitir que minha mãe tinha razão. Que ela era mais resistente do que eu, melhor do que eu. Não, eu iria ficar. Seria eu quem iria rir por último. Sobreviveria.

Então, a cada manhã, agarrava a minha rotina com uma disposição feroz. Limpar, cozinhar, passar. Virei a dona-de-casa perfeita, a super-mãe. Não me atrasava para as reuniões de pais e mestres. Experimentava novas receitas. Deixava a casa impecável. E daí que não tinha tempo para ler? E o que importava que não soubesse quais os filmes que estavam em cartaz? E qual o problema se meu corpo desmoronava? Eu era forte, mais forte do que ela. Onde quer que ela estivesse. A bruxa. Sorrindo, vitoriosa.

E mais uma vez aconteceu o inesperado. Naquela tentativa insana de ser uma mãe ainda melhor do que a minha, fui, aos poucos, deixando-me prender por aquela teia de grande amor e pequenas mágoas, questionando e entendendo mais a senhora que às vezes eu me recusava a compreender, com suas verdades absolutas e suas decisões aparentemente sem sentido. Por fim, acabei esquecendo que aquilo era uma troca de corpos. O que era para ser temporário, ficou definitivo. Eu era a minha mãe.

Com os seus métodos, regras e preconceitos. Com seus mesmos dons. O sexto sentido para pressentir quando os filhos estavam em problemas ou em perigo. A audição biônica para ouvir sussurros e passos suspeitos nas madrugadas. O olfato capaz de identificar cheiro de cigarro ou bebida a metros de distância. Repeti os mesmos erros e acertos, os certos e errados. E assim eu me vi proibindo meu filho do meio de namorar em casa. Fiz um discurso antidrogas para o menor. Chorei quando a minha filha mais velha apareceu com uma tatuagem, sem ter me pedido autorização. Logo eu, que vinte anos antes estampei um dragão na perna.

Aliás, encarar a minha filha-eu mesma foi a parte mais difícil dessa experiência. Discutir com aquela menina quase mulher que era igual e tão diferente de mim. Que me questionava e não me entendia. Então eu, que estava presa entre o mundo onde um dia quis estar e aquele onde minha mãe viveu e que agora era tão meu, enchi-me da minha nova sabedoria e vaticinei:

— Um dia você vai estar no meu lugar, e aí vai ver o que é bom.

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