Dia de Baile
Luci Afonso
“Das brumas do Nordeste...”
Não sabia direito o que eram brumas, mas tinha lido numa revista e gostava da palavra. Pernambuco era Norte ou Nordeste? Perguntou à tia.
— Acho que é Nordeste. - Se não fosse, ficaria sendo, porque precisava da rima.
“Das brumas do Nordeste
Voou para o Centro-Oeste...”
Leu em voz alta e achou bom o verso. O que mais sabia sobre ela? Os olhos eram castanhos ou negros, não tinha certeza. Melhor não falar sobre eles. O corpo não era grande coisa. Seria boa de cama? Tinha um Chevette zero, apartamento próprio no Plano, cargo de chefia no Ministério. Costumava receber os amigos para jantar. Dizem que fazia um bobó de camarão!!
Acendeu um cigarro antes de continuar. Investira 5 reais num caderno em espiral pequeno, numa caneta Bic azul e
Terminou o poema, desenhou flores em volta do texto e recortou a folha com a tesoura de picotar. Planejava entregá-lo assim que chegasse e aguardar a reação de sempre: comovida com a idéia de que o pobre coitado estivesse apaixonado, a mulher lhe daria uma chance.
Assustou-se com o toque da campainha. Nunca recebia visitas. Não deixaria que ninguém o atrasasse: estava na hora de se aprontar.
Abriu a porta e fez um gesto de desgosto: era a chata que não largava do seu pé. Tudo bem, haviam passado bons momentos — ela até o levara a Ouro Preto no feriadão, e se divertiram muito —, mas tinha acabado. Ele agora estava a fim de outra. Como fazê-la entender?
Estava magra e abatida. Abraçou-o com força, disse que sentia muitas saudades.
— Você está ficando sem vergonha - ele respondeu, num impulso de raiva. Ela se desprendeu dele, os olhos úmidos. Teve vontade de mandá-la embora, mas lhe ocorreu que seria bem melhor ir ao Plano de carro que de ônibus. Por que não aproveitar a carona?
Deitou-a no sofá e beijou-a com desagrado. — Quero ter um filho seu - ela lhe disse ao ouvido, acreditando na reconciliação. Ele lhe acariciou o corpo pela última vez. Era bonita. Não tinha muita bunda, mas o resto compensava. O problema era que não estava interessado em declarações melosas nem em cenas de choro.
— Vamos ao Flash? - ele sugeriu depois do sexo, esperando que ela recusasse, mas se oferecesse para levá-lo. Era tão desprendida! Para sua surpresa, ela aceitou o convite. No caminho, tentou, sem êxito, demovê-la da idéia. Passaram rapidamente no apartamento para que ela se arrumasse. — Todos os homens vão te olhar - ele disse, sem convicção, e saíram.
Como fazê-la entender? Convenceu-a a estacionar numa vaga mais afastada e levou-a para uma mesa no fundo do salão, de modo que ninguém os notasse. As amigas já o esperavam e lhe garantiriam o shopps e a batatinha. A pernambucana sentara-se em frente à pista de dança, sorvendo, elegantemente, a taça de vinho tinto. Ele precisava agir rápido.
Levantaram-se para dançar. Recostada no seu ombro, ao som da música que marcara o início do namoro (“A nossa estória de amor/ se parece com milhões de outras mais...”), ela surpreendeu-se quando ele a deixou no meio do salão e dirigiu-se à mesa ocupada por uma senhora de uns 50 anos — ela tinha 28 — para lhe entregar um papel picotado. Lembrou-se do poema que recebera dele meses antes e que sabia de cor: “Das brumas de Minas Gerais/ veio brilhar muito mais...”
Finalmente, entendeu e desceu correndo as escadas, Cinderela delirante, em direção ao carro já transformado em abóbora.
Anos mais tarde, ele a avistou da parada de ônibus: o sorriso meigo que pensava ter esquecido, o marido ao volante do carro, uma criança loira no banco de trás que lhe pareceu familiar. Observou-os por alguns minutos, jogou fora o Hollywood e fez sinal para o ônibus: era dia de baile.
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