Que escritora seria eu se não tivesse lido?*



Marina Colasanti


Extraída de mim a leitura, que ser humano eu seria, e que ponto de partida teria para uma escrita?

Eu começaria por não gostar de papel, não amar visceralmente qualquer folha de papel, em branco ou escrita. E a não ter aquela sensação, comum a todos os leitores, de que a tipologia está me chamando. O conceito da escrita como salvaguarda do pensamento não estaria implantado em meu viver. Sem saber que cada livro se abre sobre um mundo diferente, eu olharia apenas pela janela, que se abre sempre sobre a mesma paisagem.

A leitura me precedeu abrindo portas, fornecendo respostas a perguntas que eu ainda não havia conseguido formular. Se eu não tivesse sido leitora, é certo que precisaria de um talento infinitamente maior para escrever. Não tendo aprendido com os outros a traduzir os fatos em palavras, os sons em palavras, as cores em palavras, o tempo em palavras, a vida e a morte e a alma em palavras, que trabalhoso seria apertar sozinha, uma por uma, todas as cravelhas das palavras.

Quando me tornei outra leitora, passei a usar o lápis. Não desço mais, entregue, nas corredeiras. Analiso a força das águas, sua direção, sua profundidade. Meço a transparência, procuro o que nela se move. Tornei-me interlocutora do autor. Estou lendo por cima do ombro dele.

Com freqüência me perguntam quais as marcas dessas leituras na minha escrita. Me parece que procurar na escrita é procurar pequeno. As marcas estão em mim. E eu sou o meu texto. Mas aquilo que se fosse mais superficial seria visível, ao ser incorporado e processado no fundo do meu sentir tornou-se invisível, ainda que gerador da escrita.

À medida que avançava nas leituras e na profissão, sentia crescer meu parentesco com uma família cujo álbum de retratos olhava com intimidade cada vez mais evidente. É a família dos escritores que deram um passo para lá do real. E que ali, em terreno mais etéreo, fundaram sua realidade. Hoje, estreitados os laços, sinto-me com certeza irmã dos que reencontram seu mundo no sonho. Mas irmã, igualmente, de todos os que o buscam no papel impresso.



*Trechos do ensaio publicado em “Fragatas para Terras Distantes”,
Editora Record, 2004.

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