Fragmentos de Viagem




Alexandra Rodrigues


Domingo, 10 horas
Aos domingos o corpo e a vontade bifurcam-se na esquina do dia, a taquicardia incontrolável, o pensamento sereno. Parece que do meio-dia para a tarde é assim mesmo, o coração do prolapso mitral desobedecendo ao coração que mora fora da caixa torácica. E esse outro desembestado pelo mundo, cada vez mais cristal, tremendo diante de uma flor lilás, diante de uma criança no estacionamento, de pé descalço e mão estendida. Não devia haver crianças solitárias aos domingos.

Terça-feira, 11 horas
Muda o cenário e a narrativa: deixo o cerrado, chuvas esquecidas e aventuro-me pelas veredas de Guimarães Rosa na aula de literatura. Enfrento a calamidade do quente, no sertão onde a luz assassina demais, para desendoidecer o dia, leio palavras inventadas de livre pensador e mais que livre escrevedor. Faço anotações medindo cruzado pelas margens do livro, descubro que por pura soletração de si ninguém chega na terceira margem; que o Arrenegado, Cramulhão, o Não-sei-que diga, é um redemoinho na alma da gente; que todas as ruindades têm um propósito divino. Falamos das coisas mais alonjadas da primeira meninice e ficamos existindo, assim, belim-beleza, por uma hora de relógio sem fim, sabendo que no instante seguinte principiava o peso da vida. E que quando deixarmos o sertão, dia da gente desexistir, quando tudo secar, mesmo sabendo que as pessoas ainda não foram terminadas, terei vontade de por meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos desta manhã.

Quinta-feira, 12 horas
Raramente fecho as portas do dia. Hoje é um desses dias. Foi no centro do coração que a bala acertou. Meu amigo, um professor apaixonado pelo ofício de educar, tinha quarenta anos, um olhar transparente, sedento de utopias. Nunca fomos íntimos, mas ele exalava um cheiro de sonho acordado que me enfeitiçava. Era diretor de uma escola pública, acolhia os adolescentes na porta. Parece que tinha começado a denunciar o tráfico de drogas na escola. Foi muito de repente, às cinco da manhã. Um barulho na casa, uma porta aberta, o estampido de um tiro certeiro. E tudo se fez fim na paisagem escura da madrugada. A bala continua voando, em câmara lenta, na minha direção.

Sexta-feira, 12h30
Um sol incendiário torra a paisagem do cerrado. Na luz quente do meio-dia um flamboyant batiza o ar de vermelho. Alguns verdes semeados aqui e ali pelo desapego do vento vitalizam a paisagem quase deserta. Dirijo-me ao improvisado estacionamento após conversa delicada com uma amiga iluminada que se reencontra com sua existência criativa. O solo imensamente empoeirado tinge de marrom meus tênis brancos. Enquanto tateio a chave do carro no labirinto da bolsa, uma visão inesperada, imensamente alva e calma, pousa suavemente no meu olhar. Sobre dois finíssimos caules, uma penugem imaculada, de silenciosa tranqüilidade, posta-se, completamente imóvel, na minha frente. Como é possível que, em meio à poeira avermelhada que redemoinha por todo lado, uma elegantíssima garça se plante na paisagem árida do meio-dia? Aquieto meu gesto apressado e contemplamo-nos reciprocamente, numa imobilidade cúmplice. Ficamos assim as duas, sem chão, sem asas, sem tempo. Ela, com pose de eternidade, eu, com emocionado gesto de espanto e reverência.

Domingo, 13 horas
De novo esse dia mágico. Nunca decidi se a semana começa no domingo ou na segunda-feira. O domingo é um dia tão pleno, um intervalo tão seguro entre duas faixas do tempo! Ele me remete para essa quase suspensão de vida que eu percebia enquanto voava entre dois continentes ao longo de 10 horas, a bordo do meu ser. Talvez a semana comece de fato na segunda-feira, mas então, por que não nomeá-la de primeira feira?

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