As águas do meu Nilo
Alexandra Rodrigues
O rio Nilo secou! Amanhã de manhã você lerá essa manchete no jornal da sua cidade. Se você morar em outros Egitos, poderá ensaiar a tradução livremente na língua do seu faraó: o rio Amazonas secou, ou o rio São Francisco, o Guaíba ou o Parnaíba. Não importa em que leito o seu rio corra: secou o rio da sua aldeia, o rio dos desejos da sua adolescência e juventude, o rio pelo qual navegou livremente a sua imaginação; secou o rio que banhou as margens dos seus sonhos e que encharcou de esperança a navegabilidade da sua vida; um rio situado em algum território impreciso entre o passado e o futuro, pelo qual você desceria um dia em viagem marcada no mapa do seu corpo e combinada com a sua melhor amiga.
Imagine a amiga de uma vida inteira, aquela que você conheceu aos 13 anos no colégio, a quem confiou seus medos e segredos, aquela que se tornou mais que sua irmã, de quem você se separou com inaudível dor quando foi morar em outras terras e o destino as arremessou contra paisagens, línguas e costumes diferentes, bifurcando irremediavelmente suas vidas.
Sabe que o reencontro marcado, na luz do amanhã, era uma fantástica viagem pelo rio Nilo para visitar as gigantescas estátuas dos faraós, os templos colossais dos deuses e as misteriosas pirâmides de Gisé? Que mais de quatro mil anos de História esperaram por vocês durante quase quarenta anos de uma única existência? Sabe que as pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos resistiram à erosão, à espera de duas mulheres que um dia prometeram visitá-las juntas? Que Osíris zelou, lá da eternidade, pela navegabilidade dos seus sonhos e Tutankamon, em seu imponente trono de ouro maciço, ordenou que o rio que deu vida ao Egito permanecesse encharcado de leito por mais de quatro mil anos, aguardando você e sua melhor amiga? Sabe quando a materialidade da infância, da adolescência, da juventude vai ficando cada vez mais imperceptível no fio do tempo e um sonho sonhado junto é o elo que une o seu passado ao seu futuro? Sabe quando o tempo vai fluindo como uma correnteza que banha mil vidas e se passam dez, vinte, trinta anos, quase quarenta e você continua brincando de sonhar com um Nilo de águas límpidas que nunca envelhecerão, um rio que estará eternamente à sua espera, aguardando essa viagem que você e a sua amiga farão em breve, dali a algum tempo, um dia, quem sabe?
Imagine agora que, em um efusivo telefonema de parabéns a você que atravessa um oceano e dois continentes, a velha amiga lhe revela inesperadamente que acabou de chegar do Egito. E delicadamente se desculpa por ter traído o combinado de uma vida. Não era para ter ido ao Egito, mas enfim, a Grécia estava ardendo e na última hora, bem na véspera de partir de férias, a agência de viagens conseguiu duas passagens para o Egito. Sabe quando, represando o inesperado choro adolescente que tenta conter no meio do telefonema, quase rompendo os diques da barragem de Assuã, você pergunta, na tentativa de dar um tom de graça à desgraça que acaba de se abater sobre o seu coração, mas já sabendo a resposta, E com quem você me traiu? Claro que a viagem da amiga foi com o marido dela, com quem você mantém as melhores relações, mas aquela viagem não era para maridos, era para ser a viagem de duas amigas de uma vida!
Quando a passagem tem já quase meio século é difícil cancelar o que sobrou de um sonho, talvez o único que você mantém desde os treze anos. Então você ainda tinha sonhos pueris, dá-se conta no meio do telefonema. Podemos ir a Machu Pichu, quem sabe ao arquipélago dos Açores, propõe a amiga, num gesto inutilmente gentil. Mas não se fazem pirâmides nos Nilos dessas terras! Você compreende a amiga no mais íntimo do seu ser, porém a redoma de vidro que protege as relíquias de Tutankamon está agora vazia, irremediavelmente vazia, no museu do Cairo da sua vida. Não se protege um tesouro faraônico com vidro, você descobre, quando a câmara do Tutankamon foi já violada e o escriba que acolhia as ordens do faraó se recusa a escrever, sobre o papiro da vida, mensagens do futuro.
Compreende agora a manchete do jornal de amanhã? As águas do meu Nilo secaram. E as do seu rio?
Alexandra Rodrigues nasceu em Lisboa e replantou suas raízes em Brasília em 1985. É psicóloga e professora na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Tem desenvolvido nos últimos 20 anos uma proposta de Oficina da Palavra, espaço de (re)encontro de educadores com o prazer da escrita. Publicou em 2004 O Nome das Coisas, um livro em prosa poética acerca da Palavra, e em 2007 Minha avó botou um ovo, seu primeiro livro de crônicas, ambos pela Thesaurus.
Mas, como vou INAUGURAR os comentários à essa pérola?
ResponderExcluirAlexandra,tudo o que você escreve é ma-ra-vi-lho-so. Você me remete ao rei Midas.
Um beijo,
Angela Delgado