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Mostrando postagens de novembro, 2018

Abaixo de zero

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Luci Afonso O ambiente no ônibus era tenso. Tínhamos acordado de madrugada para chegar a Washington ainda de manhã. Todos estavam sonolentos e com fome, pois o  breakfast  seria servido num restaurante na primeira parada, após duas horas. Era domingo. Eu estava sozinha, num dia particularmente difícil. Minha prima, que me acompanhava, resolvera ir também de ônibus a um  outlet  em Nova Jersey para trocar o par de tênis da filha. Havíamos andado a cidade inteira atrás desse tênis. Ela não desistiu. O guia, Antonio, estava pouco inspirado: sentou-se e não falou até chegarmos ao restaurante. Depois de comer, pareceu despertar e disparou a falar sobre os lugares por que passávamos. Estava muito, muito frio. Achei a cidade belíssima. Visitamos os pontos históricos, incluindo os memoriais de guerra, a Casa Branca e o Capitólio. Antonio andava depressa, quase correndo, por causa do frio e do horário. O grupo tentava acompanhá-lo, e eu era sempre a última a descer e a subir no ôn

Saramago e as palavras

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“Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos, discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tateamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e, às vezes, até, encontrando.” “Ao contrário do que geralmente se pensa, as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar, Queres um café,

Sabiazinho

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Luci Afonso Saio mais uma vez para caminhar, diluindo a ansiedade em passadas curtas e firmes. A chuva lavou o céu e as nuvens até chegarem a um tom puríssimo de azul e branco. Toda manhã sinto o abraço do sol e o carinho das árvores. Conheço cada uma em meu trajeto. Sei a que floriu ontem, a que perdeu folhas ou ganhou brotos. Elas me acenam e me lançam flores. Há alguns dias, sou atacada por um pássaro que voa rente à minha nuca e faz um ruído assustador. Pela violência do ataque, poderia ser uma ave de rapina. Hoje ele   atacou uma vez e pousou no chão do prédio; atacou de novo e pousou num galho. Descubro que é apenas um sabiazinho cinza-escuro, não sei se macho ou fêmea, provavelmente defendendo seus filhotes. Começa uma chuva fina e refrescante. Acelero o passo e chego em casa a tempo de ver meu filho saindo para a faculdade. Ele está fazendo um enorme esforço para retomar os estudos. — Hoje nem consigo existir — ele costuma dizer, meio brincadeira, meio verdade.

Pequena pequena vida

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Luci Afonso Mais uma vez visito Araxá, Minas Gerais. A vida na cidade pequena se resume ao essencial: comer, dormir, amar, conversar. Não há distrações como na cidade grande. Um shopping , por exemplo, é absolutamente desnecessário. Indispensável mesmo é a cadeira na calçada ou na varanda para observar o movimento e cumprimentar quem passa.     O tempo anda mais lento. Ninguém tem pressa. Os amigos param e batem papo no trânsito sem ouvir buzinas. Todos se conhecem. A maioria nunca viajou e não sente falta disso. Alguns já foram a lugares distantes a cem e até a duzentos quilômetros. As pessoas são mais satisfeitas, mais contentes. O dia transcorre calmo, tudo na sua hora, com intervalo para a sesta do almoço. É possível chegar a pé à avenida principal, onde fica o comércio. Que, aliás, fecha ao meio-dia de sábado e só reabre na segunda-feira. A maior distração são os encontros de família ou de amigos. Quem não tem nenhum dos dois corre o risco de se sentir só. Sem a opç

Amabilidade reduzida

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Luci Afonso Na semana passada, houve a formatura de um sobrinho num elegante clube de Brasília. Chegamos em cima da hora, o salão lotado. As cadeiras vazias estavam “marcadas” por bolsas e casacos, como é o costume brasileiro. Depois de procurar inutilmente por dois lugares, decidi recorrer ao meu direito de Pessoa com Mobilidade Reduzida de ocupar poltronas preferenciais, junto com um cuidador. É claro que enfrentamos olhares reprovadores. Na plateia, vi pessoas que não haviam utilizado o seu direito, entre elas, um homem com um tremor visível e um rapaz em cadeira de rodas, espremidos entre os convidados, quando poderiam estar sentados à frente, com mais espaço e conforto. A lei brasileira equipara os direitos das pessoas com deficiência aos das pessoas com mobilidade reduzida e garante a ambos os grupos o atendimento prioritário. Nesse caso específico, os seguranças foram acolhedores e simpáticos, mas, como me lembrou hoje uma amiga, eles poderiam ter perguntado: — O

O prazer de ler

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Palestra "O prazer de ler" na Escola Municipal Profa. Auxiliadora Paiva, Araxá, MG Mais fotos: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=2162309913793472&id=100000434529474

Um domingo

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“Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente — como em dores de parto — e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim." (Clarice Lispector, A descoberta do mundo ) (Imagem:  https://br.pinterest.com/pin/222365300335887830/?lp=true )