Saramago e as palavras
“Estranha relação é a que temos com as
palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos
recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato
com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre
cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum
dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim
convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos,
discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias
muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto
tateamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos
entendendo, e, às vezes, até, encontrando.”
“Ao contrário do que geralmente se pensa,
as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos
são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar,
Queres um café, poderia servir de introdução a um amargo debate sobre
sentimentos que se perderam ou sobre a doçura de uma reconciliação a que não se
sabe como chegar.”
“...como conseguiremos nós explicar o que
se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falámos
noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjetivo, e, por
mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos
encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido
descrever, como se um sentimento fosse assim como uma paisagem com montanhas ao
longe e árvores ao pé...”
(José Saramago. O homem duplicado. São Paulo. Companhia
das Letras, 2017)
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