Abaixo de zero



Luci Afonso

O ambiente no ônibus era tenso. Tínhamos acordado de madrugada para chegar a Washington ainda de manhã. Todos estavam sonolentos e com fome, pois o breakfast seria servido num restaurante na primeira parada, após duas horas. Era domingo. Eu estava sozinha, num dia particularmente difícil. Minha prima, que me acompanhava, resolvera ir também de ônibus a um outlet em Nova Jersey para trocar o par de tênis da filha. Havíamos andado a cidade inteira atrás desse tênis. Ela não desistiu.
O guia, Antonio, estava pouco inspirado: sentou-se e não falou até chegarmos ao restaurante. Depois de comer, pareceu despertar e disparou a falar sobre os lugares por que passávamos. Estava muito, muito frio. Achei a cidade belíssima. Visitamos os pontos históricos, incluindo os memoriais de guerra, a Casa Branca e o Capitólio.
Antonio andava depressa, quase correndo, por causa do frio e do horário. O grupo tentava acompanhá-lo, e eu era sempre a última a descer e a subir no ônibus. Eu calçava uma bota linda que comprara no Brasil, mas o zíper só fechava até a metade —não era defeito, era modelo. Isso a tornava ainda mais pesada e meu passo, mais lento.
Na segunda parada, o guia pegou meu braço e me conduziu à frente do grupo:
— A senhora é mais lenta. Deixe-me ajudá-la.
Nas paradas seguintes, ele me esperava na porta do ônibus e me escoltava até o local da visita. Tornei-me o centro das atenções. Um jovem casal puxou o zíper da minha bota, pensando que ele fecharia inteiro. Uma senhora idosa certificava-se de que eu estava bem agasalhada a cada descida.
Passei a me esconder no meio das pessoas para evitar a ajuda. Antonio me esqueceu e continuou seu trabalho. No final da tarde, chegamos muito atrasados ao Smithsonian Museum. Enfrentamos uma fila imensa. Ele pegou meu casaco e minha bolsa e se dirigiu ao segurança na entrada:
— She’s slow (ela é lenta) — ele quis justificar, mas o guarda não permitiu que ele pusesse meus objetos na esteira; teria que ser eu mesma. Ele voltou para seu lugar, contrariado.
 Nosso guia repetiu o dia inteiro que eu era lenta. Por que não calei sua boca desde o início? Bastava dizer qual era o problema.
Não tive coragem. Tive medo de chamar ainda mais a atenção do grupo. Eu estava sozinha. Minha acompanhante me abandonara para trocar um par de tênis vagabundo. Foi só na volta que me levantei da poltrona e disse a Antonio por que eu era lenta. Ele não falou mais até chegarmos a Nova Iorque.
O tênis que minha prima tentou trocar havia saído de linha. O frio de Washington me causou uma bronquite que durou meses após minha volta ao Brasil. Os guias turísticos continuam pegando no pé, ou no braço, de senhoras de meia-idade que andam devagar. A impaciência e o desrespeito às limitações humanas chegam a vários graus abaixo de zero em todos os cantos do mundo.

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