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Mostrando postagens de julho, 2014

O gigante americano

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Luci Afonso Desde ontem sinto uma dor dilacerante na base da coluna. Ela começou quando fui tirar o gato de cima da mesa, esquecendo que agora ele pesa quase dez quilos. Abaixei-me de mau jeito e me levantei torta.   De início, procurei o ortopedista, que me encaminhou ao fisioterapeuta, que depois de vinte sessões me devolveu ao ortopedista, sem melhora nenhuma. Analisando   as opções de tratamento — osteopatia, terapia mecânica, reconstrução músculo-articular, mobilização neural, conduta cinesioterapêutica, quiropraxia —, lembrei-me de uma amiga que há pouco teve um problema semelhante. — Quiropraxia é bom — diz Isolda ao telefone —, mas dói muito no começo. Depois alivia. O pior é a cadeira. Haja o que houver, não solte o pescoço. — Por que não? — Você já viu os filmes do James Bond? Eles quebram o pescoço dos caras com um clique. Minha experiência com a quiropraxia não é boa. Há muitos anos, fui atendida por um picareta que só levou meu dinheiro. Agora, p

Olhos negros

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Luci Afonso — Marido? — perguntou a moça na fila da lotérica. — Tombo — respondi. — A senhora já ouviu falar da Lei Maria da Penha? — indagou um simpático homem de terno na outra fila. Além de pagar a conta em atraso do telefone, eu precisava sacar 100 reais para acertar as aulas com o personal trainer. Tinha também de passar no Ôba e na farmácia. Estava com muita pressa, porque daí a pouco começaria a partida entre Brasil e Chile. — A Lei Maria da Penha? Sim, claro — respondi, distraída.   — As leis existem para serem aplicadas. Leve meu cartão. Sou especialista nesses casos. Agradeci sem convicção. Após ser atendido, ele se voltou para mim e recomendou, com veemência: — Exerça seu direito, minha senhora! Só assim teremos um mundo mais justo. — O senhor tem toda a razão! — concordei. Quando entrei no Ôba, todos me olharam. Uma adolescente de lindos olhos azuis desatou a chorar e se agarrou à mãe. Os atendentes cochicharam, apontando em minha di

Fome de Brigadeiro

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Luci Afonso — Um dia a gente pode fazer aula no Olhos Dágua — sugeri, enquanto continuávamos a caminhada. — Lá tem aparelhos pra terceira idade? — ele perguntou. — Acho que sim — respondi, magoada. Dobramos a quadra. O passo era moderado, pois eu já me cansara muito nos alongamentos preliminares. Na camiseta dele, as palavras personal trainer bem grandes, seguidas do número de telefone, chamavam a atenção. Eu tinha vergonha de parecer uma dondoca. Preferia ser um casal de amigos andando juntos, mas a propaganda é importante, e não tive coragem de pedir que usasse uma roupa mais discreta. Fazíamos aula há cerca de um mês, e nesse prazo tínhamos atingido um estágio razoável de intimidade. Falávamos sobre quase tudo, inclusive nossa vida sentimental. — Estou pensando em entrar naquele site — eu disse, referindo-me a um site de namoro na Internet, no qual uma amiga tinha conhecido homens interessantes. — Minha avó procurou namorado na Internet, quan

Resenha do conto "Entre o sonho e o pesadelo", de Nena Medeiros

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  Luci Afonso   Nena Medeiros é conhecida pelas crônicas leves e bem-humoradas, como Ô, coisa boa! , que dá título ao seu terceiro livro. Nena transita com desenvoltura entre o humor, o lirismo, a crítica social e a irreverência. É tão versátil que resolveu uma das mais controversas questões da teoria da literatura — a diferença entre os gêneros conto e crônica — simplesmente criando um novo termo: o croniconto. Por que ninguém pensou nisso antes? O conto “Entre o Sonho e o Pesadelo”, porém, nada tem de croniconto. É conto puro, denso, de fundo dramático inequívoco e de desenlace trágico inevitável. A autora abre espaço para a crítica social ao denunciar o abandono a que são relegadas as pessoas à margem da sociedade institucionalizada de consumo. O humor, porém, não tem vez: o texto é sofrimento bruto. Nena Medeiros cria uma intrincada estória ao estilo da grande Lygia Fagundes Telles: as pistas sutilmente plantadas ao longo do texto não deixam entrever o choque pr

Resenha do filme "Poesia", de Lee Chang-Dong

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    Luci Afonso   Crianças brincam à margem do rio, enquanto a correnteza traz o corpo da jovem Agnes, que se jogou da ponte. Esta é a cena inicial do filme “Poesia”, do diretor sul-coreano Lee Chang-Dong, prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes 2010. Em seguida, vemos a elegante Sra. Yang Mija (Yoon Jeong-hee), blusa e saia estampadas, echarpe de renda e chapéu, indo ao hospital por causa de dores no braço e falhas de memória que vêm ocorrendo ultimamente. A personagem cativante e agradável logo conquista a simpatia do espectador. Ela sorri para tudo e para todos. Abraça a vida com paixão e otimismo. Quando Mija chega ao trabalho, descobrimos que, apesar da elegância, ela é empregada de um rico senhor vítima de derrame. Faz tarefas humildes, como dar banho, vestir e alimentar o cliente, além de cuidar da faxina da casa. Quando lhe perguntam por que se veste daquela forma, ela responde simplesmente: “porque gosto de me arrumar”. Em breve saberemos que a elegân