Resenha do filme "Poesia", de Lee Chang-Dong
Luci Afonso
Crianças brincam à
margem do rio, enquanto a correnteza traz o corpo da jovem Agnes, que se jogou
da ponte. Esta é a cena inicial do filme “Poesia”, do diretor sul-coreano Lee
Chang-Dong, prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes 2010.
Em seguida, vemos a
elegante Sra. Yang Mija (Yoon Jeong-hee), blusa e saia estampadas, echarpe de
renda e chapéu, indo ao hospital por causa de dores no braço e falhas de
memória que vêm ocorrendo ultimamente. A personagem cativante e agradável logo
conquista a simpatia do espectador. Ela sorri para tudo e para todos. Abraça a
vida com paixão e otimismo.
Quando Mija chega ao
trabalho, descobrimos que, apesar da elegância, ela é empregada de um rico
senhor vítima de derrame. Faz tarefas humildes, como dar banho, vestir e
alimentar o cliente, além de cuidar da faxina da casa. Quando lhe perguntam por
que se veste daquela forma, ela responde simplesmente: “porque gosto de me
arrumar”. Em breve saberemos que a elegância exterior é reflexo do seu caráter.
Na volta para casa,
Mija depara-se outra vez com o anúncio de aulas de poesia no centro cultural do
bairro, e decide fazer o curso. A quem estranha sua decisão, ela explica que
“tem veia de poeta, gosta de flores e diz coisas esquisitas”.
Começam as aulas. O
professor ensina que não é difícil escrever um poema; o difícil é encontrá-lo
no coração. Para isso, é preciso “ver”. Ele dá o exemplo de uma maçã. A
aprendiz de poesia tenta “ver” uma maçã, apenas para concluir que é melhor
comê-la. Caderno e lápis na mão, ela observa árvores, flores e pássaros, em
busca da inspiração poética. Faz anotações desconexas, que depois irão compor
seu primeiro poema.
“Som de pássaros
cantando; o que eles estão cantando?”
“O tempo passa e as flores
murcham.”
“Os abricós se lançam
ao chão; pisoteados e esmagados, se lançam a outra vida.”
Ao longo do filme, a
personagem fará descobertas assustadoras: seus esquecimentos são sintomas
iniciais da doença de Alzheimer; o neto de quem ela cuida, Wook, é um dos
responsáveis pelo suicídio da jovem estudante Agnes, que vinha sendo abusada
sexualmente por ele e por seus colegas. O caso é abafado por um acordo entre os
pais dos rapazes e a mãe da vítima. A avó de Wook participa desse acordo com
relutância.
O sorriso de Mija vai
sumindo aos poucos, à medida que ela vai tomando conhecimento da realidade. Wook
parece indiferente à tragédia da jovem que se matou. Num ato supremo de coragem
e dignidade, a avó denuncia o neto à polícia para que ele entenda as consequências
do seu ato e se reumanize.
Mija vai esquecendo
gradualmente o nome das coisas, “os substantivos primeiro, porque são mais
importantes”, mas persevera em busca da poesia. Não a encontra na beleza de uma
flor, mas no retrato de Agnes; não a reconhece no canto dos pássaros, mas no
lamento da mãe enlutada; não a escuta no vento que sacode as árvores, mas no
burburinho da correnteza que levou o corpo da jovem suicida.
Enfim, a dor, e não a
beleza, traz a inspiração poética. A
Sra. Yang Mija escreve seu primeiro e talvez o último poema, inicialmente
narrado na própria voz da autora, depois, na de Agnes.
“A
Canção de Agnes
Yang
Mija
Como
são as coisas aí?
É
muito solitário?
O
poente se tinge de vermelho?
Os
pássaros cantam a caminho da floresta?
Pode
receber a carta que não ousei enviar?
Pode
ouvir a confissão que não ousei fazer?
O
tempo vai passar e as rosas vão murchar?
É
hora de dizer adeus
Como
um vento que vai embora
Como
uma sombra
Às
promessas nunca cumpridas
Ao
amor que nunca chegou
(VOZ
DE AGNES)
À
grama que beija meus tornozelos cansados
Aos
passos leves que me seguem
É
hora de dizer adeus
Desce
agora a escuridão
Vão
acender uma vela?
Fico
aqui rezando
Ninguém
deve chorar
Quero
que você saiba
O
quanto amei você
A
longa espera num dia quente de verão
Uma
antiga trilha que lembra o rosto de meu pai
Uma
solitária flor do campo que vira o rosto timidamente
Quão
profundamente eu amei
Como
meu coração se apertou ao ouvir sua canção distante
Eu
quero abençoar você
Antes
de atravessar o rio escuro
Com
o último suspiro de minha alma
Estou
começando a sonhar
Uma
manhã brilhante de sol
Desperto
novamente, cega pela luz
E
encontro você
Ao
meu lado.”
Termina o poema. A jovem
Agnes, de frente para a ponte, se volta para o espectador com um sorriso puro e
feliz. A correnteza segue o curso da vida-morte-poesia.
(Texto produzido na disciplina Contexto Cultural e Linguagem, do Curso de Licenciatura em Letras-Português da Universidade Católica Virtual de Brasília, para avaliação final no primeiro semestre de 2014. Prof: Andréa
Márcia M. M. A. Coutinho.)
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