Resenha do conto "Entre o sonho e o pesadelo", de Nena Medeiros
Luci Afonso
Nena Medeiros é
conhecida pelas crônicas leves e bem-humoradas, como Ô, coisa boa!, que dá título ao seu terceiro livro. Nena transita
com desenvoltura entre o humor, o lirismo, a crítica social e a irreverência. É
tão versátil que resolveu uma das mais controversas questões da teoria da
literatura —
a diferença entre os gêneros conto e crônica — simplesmente
criando um novo termo: o croniconto. Por que ninguém pensou nisso antes?
O conto “Entre o Sonho
e o Pesadelo”, porém, nada tem de croniconto. É conto puro, denso, de fundo
dramático inequívoco e de desenlace trágico inevitável. A autora abre espaço
para a crítica social ao denunciar o abandono a que são relegadas as pessoas à
margem da sociedade institucionalizada de consumo. O humor, porém, não tem vez:
o texto é sofrimento bruto.
Nena Medeiros cria uma
intrincada estória ao estilo da grande Lygia Fagundes Telles: as pistas
sutilmente plantadas ao longo do texto não deixam entrever o choque provocado
pelo desfecho. Este parece inesperado, embora estivesse determinado desde o
começo. Assim é o bom conto de suspense. O leitor ingênuo certamente pensará
que poderia ter adivinhado o final, mas se engana, porque foi deliberadamente conduzido
na direção oposta. Símbolos aparentemente difíceis de decifrar, uma vez
concluída a estória, se revelam com toda a clareza. Isso porque foram usados,
com habilidade, por quem domina a multissignificação do texto literário.
Apesar do título, no
conto não há espaço para o sonho, nem como esperança, nem como devaneio. Há, sim, o delírio que toma conta da
personagem , que sobrevive entre a crueza da realidade e o pesadelo do vício. Realidade e delírio são apavorantes: o
gato preto, a escuridão, a gargalhada histérica da bruxa em que ela inconscientemente
se transformou são prenúncios da tragédia. Os vidros embaçados do hotel, o
letreiro com as letras apagadas, a porta de ferro corroída pela maresia são
representações da decadência física e moral da personagem. A morte ronda o texto
da primeira à última linha: a morte progressiva e dilacerante da lucidez, da
alma, do filho.
“Entre o sonho e o
pesadelo” narra a impotência humana diante da tragédia, descrevendo os
estertores de corpo e alma corrompidos pelo vício. A luta está perdida desde o começo.
A esperança é inútil. A vertigem toma conta do leitor no angustiante e
inescapável pesadelo. Num falso despertar, ele sonha, por instantes, com um
final feliz, mas a realidade logo se impõe: o berço vazio, a densa nuvem de
heroína e álcool, a seringa espetada no bracinho mirrado.
Um soco no estômago, um
tapa na cara. Esse é o efeito deste excepcional conto de Nena Medeiros. Só
recomendo para quem suporta literatura na veia.
(Esta resenha participou do I
Concurso de Resenhas do Sindicato dos Escritores do DF 2014.)
(Leia o conto de Nena Medeiros.)
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