Olhos negros
Luci Afonso
—
Marido? — perguntou a moça na fila da lotérica.
—
Tombo — respondi.
—
A senhora já ouviu falar da Lei Maria da Penha? — indagou um simpático homem de
terno na outra fila.
Além de pagar a conta em
atraso do telefone, eu precisava sacar 100 reais para acertar as aulas com o
personal trainer. Tinha também de passar no Ôba e na farmácia. Estava com muita
pressa, porque daí a pouco começaria a partida entre Brasil e Chile.
— A Lei Maria da Penha?
Sim, claro — respondi, distraída.
— As leis existem para
serem aplicadas. Leve meu cartão. Sou
especialista nesses casos.
Agradeci
sem convicção.
Após ser atendido, ele
se voltou para mim e recomendou, com veemência:
— Exerça seu direito,
minha senhora! Só assim teremos um mundo mais justo.
— O senhor tem toda a
razão! — concordei.
Quando entrei no Ôba,
todos me olharam. Uma adolescente de lindos olhos azuis desatou a chorar e se
agarrou à mãe. Os atendentes cochicharam, apontando em minha direção. Peguei
duas bandejas de abacaxi e paguei em dinheiro. A moça do caixa não resistiu em
perguntar:
—
Marido?
—
Tombo — resmunguei.
— Ah!
— ela exclamou, incrédula.
Corri para a farmácia. Clecivan, o balconista que
me atende há anos, soltou um grito:
— Meu Deus! Quem fez
isso com a senhora? Marido?
—
Tombo, Clecivan. TOMBO! — gritei.
Há quatro noites,
chegando de um lançamento de livro, eu levara um tombo cinematográfico na
entrada do prédio. É claro, fui pega de surpresa. Eu vinha andando calmamente quando
meu pé virou e bati a face esquerda no chão. Os óculos voaram. Machuquei os
joelhos, os cotovelos e quebrei duas unhas.
A dor era insuportável.
Um calombo despontou imediatamente acima da sobrancelha esquerda. O pé parecia
torcido, e os joelhos sangravam. Ninguém apareceu. O porteiro, que estava na guarita
a poucos metros, não viu nada. Levantei-me e fui mancando até o elevador.
Eu estava sozinha em
casa com os gatos, pois meu filho passava férias na casa dos primos. Joguei-me
na cama e comecei a chorar. Quem eu poderia procurar àquela hora sem causar
susto? Lembrei da minha querida massagista Alda, que tem conhecimentos de
enfermagem e que costuma dormir tarde. Por telefone, ela me deu instruções sobre
a aplicação de compressas quentes ou frias. Fiz tudo o que ela mandou, tomei
analgésicos e soníferos e mergulhei num sono agitado e doído.
Pela manhã, o calombo
na testa desinchara, e o pé não dava mostras de torção. A pálpebra superior tinha
um pequeno hematoma, que foi aumentando e escurecendo até se transformar num assustador
círculo preto. Eu sentia uma dor difusa, como se todo o corpo se ressentisse da
queda.
Confesso que sou
supersticiosa. Eu atravessava uma fase de azar. Coisas vinham se quebrando ou
estragando ao meu redor. Luzes queimavam. Há poucos dias, minha cama quebrara o
pé. Tive que tirar os outros pés e colocá-la no chão. Minha gata entrou no cio de
repente, e eu tinha que pegá-la a noite inteira para evitar que seus gemidos
incomodassem os vizinhos. Estou enfrentando uma crise financeira que ocorre a
cada sete anos. O chip do smartphone deu defeito. Para coroar essa
fase, veio o tombo.
Alda telefonou para
saber como eu estava e aproveitei para lhe pedir que benzesse a casa. Ela veio
prontamente, trazendo ervas, sal grosso, velas e rezas aprendidas com a avó
curandeira. Sentou-me no centro da sala e fez um longo ritual de purificação do
ambiente.
— A energia estava
pesada, minha flor — ela disse ao terminar os trabalhos.
— Poxa, Alda, quando
isso vai passar?
— Vai ficar tudo bem,
minha flor. É bom se acalmar para só atrair bons fluidos.
Senti-me aliviada. Até
a dor pareceu diminuir. Resolvi aceitar o convite de uma amiga para um show de
dança flamenca à noite. Estava me arrumando quando o telefone tocou. No caminho
para a sala, um vulto passou correndo na minha frente. Era a gata no cio.
Tropecei nela e bati a face direita na quina da mesa de vidro. O sangue
escorreu pelo vestido, enquanto outro calombo crescia na testa.
Alda garantiu que
dentro de um mês os olhos vão clarear e recomendou o uso diário de creme de
arnica. Agora só saio com óculos escuros, mesmo à noite. As amigas acham esquisito.
Não me importo. Só quero passar despercebida enquanto minha vida retorna à
normalidade.
Às vezes, tiro os
óculos sem querer e sou flagrada por algum curioso:
— Marido?
— Tombo! TOMBO! TOM-BO!
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Tarlei Martins Nem um pouco bom de viver, mas muito
bom de ler... Que tudo isso passe, querida Luci. Lembrando Caetano: "Como
é bom poder tocar um instrumento!". E como você toca bem o instrumento da
palavra!!! Abs, Tarlei
Luci Afonso Tarlei, metade é invenção, graças a
Deus!
14 de julho
de 2014 às 12:36
Tarlei Martins Então você é mestra em
"confiçções" assim? Bem melhor...
14 de julho
de 2014 às 12:37
Tarlei
Martins Vou cometer uma inconfidência: tenho desejo de escrever um livro com
esse título (conficções)... Mas nele só falaria verdades. Acredita?
14 de julho
de 2014 às 12:38
Luci Afonso Acho ótimo o título. Só a verdade...
é difícil resistir a inventar alguma coisa.
14 de julho
de 2014 às 12:39
Vânia Gomes Ah! Luci!! ADOREI! Humor leve e
divertido, apesar das dores... Abração.
14 de julho
de 2014 às 14:02
Alexandra Rodrigues Amei! Sua capacidade de transformar
dramas em humor é notável! Ok, você deu o TOM ...e a criatividade fez o resto.
Um abraço
ADOREI, LUCI!!!
ResponderExcluirTexto leve, super bem humorado e que retrata bem como são essas coisas!
Beijos.
ResponderExcluirAmei!!! Só vc para transformar dramas no mais requintado humor. Espero que esteja se recuperando bem do TOM-BO...que a palavra, essa, vai de vento em popa, no TOM mais que perfeito!Beijos
Alexandra