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Mostrando postagens de novembro, 2007

Enamoramento 1

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Maria Amélia Costa Olha-o por trás. Sentada ao lado dele fez com o olhar um contorno impossível. Ela gosta de olhar por trás, comedida em feições que se expressam na clandestinidade de quem acredita que pode ver além. Não ser vista e assim cercar o ser amado com cercanias quadradas, redondas, perpendiculares, transversais. Trazer fiozinhos sutis e delicados das entranhas da terra para o atravessarem, o fixarem e o aprisionarem no tempo que é só dela. No tempo que é dela quer, também, vê-lo pelo lado do lado dele: nem à frente, nem atrás, nem de cima. De cima, talvez. Contudo, de lado. Mas, não quer ser vista. Nessa condição clandestina o olhar o atravessa na pretensão de luz que tudo ilumina, decifra, expõe, constrange. Ele está distraído com alguma coisa, tocando alguma coisa ou, simplesmente, olhando em frente enquanto fala com ela. Mas ela não quer falar. Talvez até queira. Talvez até fale uma banalidade qualquer. Mas, definitivamente, não é falar o que ela quer. Não naquela hora. N

Barriguda

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— Quantos meses? — Que barriga linda! — Já sabe o sexo? Por onde eu andava, recebia olhares e perguntas gentis. Nas filas do banco, o guarda ou gerente vinham me lembrar do atendimento preferencial às gestantes. Jovens e idosos se levantavam para me ceder o lugar. Mulheres me olhavam com inveja. Uma senhora de cabelos brancos no parque pediu permissão para tocar meu ventre e se emocionou ao ouvir um coração batendo. Uma colega disse que minha pele estava linda; outra previu que seria menino, pelo formato pontudo da barriga. Durante meses fui alvo de incontáveis delicadezas. Só havia um problema: eu não estava grávida. Na verdade, eu tomava um remédio que dilatava o abdômen e causava a protuberância. Quando surgiram as primeiras perguntas, eu tentava explicar a situação. Depois me cansei e resumia a resposta a “não estou grávida”. Em seguida, adotei o comportamento passivo-agressivo: — Onze meses. — A sua também. — É gay. Encolhia a barriga e prendia a respiração sempre que me aproxi

Pessoas que nos atravessam

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Maria Amélia Costa Eu o encontrei. Entrei na livraria fazendo uma daquelas coisas que se faz por hábito, como esse que tenho de pesquisar em livrarias cada vez que vou a um shopping center. Um pouco melancólica e entregue ao acaso não coloquei atenção nas pessoas que se movimentavam no interior da loja. Estava distraída quando fui surpreendida por um “oi” vindo ao meu encontro. Virei. Era ele. Abraçamos-nos e nos dissemos alguma coisa, ao mesmo tempo, numa surpresa única. Não consigo imaginar a expressão do meu corpo naquela hora. O que disseram os meus olhos ou a minha boca trêmula. Ele estava ali, na minha frente, como um milagre. Tantas vezes conversei contigo nos tempos de ausência. Disse tantas coisas! Compartilhei momentos. Contei histórias e feitos meus. Falei da falta que sinto das vezes que sorrimos juntos por coisas banais. Falta dos cuidados teus. Que por vezes me vejo em atitudes tolas, iluminando pequenas coisas que vieram de ti. Emoldurando. Ilustrando. Colocando sentido

Deu zebra

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Tarde de sábado, 30 graus, umidade a 20%. Mãe e filho vão ao cinema no Pátio Brasil. Escolhem um filme sobre uma zebra que, abandonada ainda filhote pelo zoológico, é encontrada por um fazendeiro e cresce ao lado de cavalos puro-sangue, pensando ser um deles. Stripes, como passa a ser chamada, é motivo de chacota de animais e homens, mas não desiste do sonho de vencer a corrida mais importante da região. O menino corre para pegar a almofada infantil. Na fileira de trás, uma velhinha corcunda e cheirosa também foi colocada numa almofada e balança os pés, satisfeita, enquanto se delicia com um saco de pipoca. Durante o filme, será a vez de chupar balinhas, com um ruidoso movimento de sucção que se contrapõe à trilha sonora. Enquanto o filho se diverte com a estória, a mãe volta no tempo e constata, com alguma tristeza, que, ao contrário de Stripes, sempre se sentiu zebra, e que para isso contou com a ajuda de muitos que não lhe perdoavam a estranhez nem a superioridade. Na infância, Magr

Uma pessoa em busca de palavras

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Maria Amélia Costa Ela gosta de livrarias, principalmente aquelas que têm, anexo, um café. Gosta de ficar ali para folhear, apalpar, procurar, sentir. Sentir cheiro de livro tomando café. Foi em uma livraria que encontrou a professora e escritora da qual ela prefere não dizer o nome, agora. Conversa vai, conversa vem foi feito o convite para conhecer uma oficina de literatura. Levou o convite nas páginas de um livro de crônicas que acabara de ser autografado. Naquele momento o convite já estava aceito. Depois da decisão veio a dúvida. Será que deveria ir? Pesquisou pelas páginas da internet - nessa bisbilhotice tão, aparentemente, fácil nos dias atuais. Da pesquisa ficou a impressão de que se tratava de um grupo muito específico de funcionários da Câmara dos Deputados. Deve ser um monte de gente metida a besta, pensou. Mas, sem que falasse nada, o convite foi reforçado e então resolveu ir e ver o que acontece. No calor de quase meio dia de um dia quente de início de primavera no ano 20