Eu te perdoo

Luci Afonso Pai, é tarde de domingo, o vento está forte, e parece que vai chover. No domingo, geralmente, sinto um pouco de angústia quando vão se aproximando as 17 horas. Hoje, meu coração está tranquilo, sem sofrimento. Por isso, resolvi falar com vc. Sei que no domingo à tarde vc gosta de assistir ao futebol na TV. No intervalo, faço um café, frito um biscoito e te chamo para o lanche. Seu time está perdendo, vc está preocupado com o segundo tempo. Volta para a sala, e eu começo a lavar a louça do almoço. Esse é o sonho que me vem constantemente. Me dá uma agradável sensação de paz e bem-estar, que se dissipa logo que acordo. Só me permito amar vc em sonhos. É que eu não te perdoei, e assim deixei de receber o imenso amor que vc me dedicava. Me perdoe por não ter falado com vc na última vez que ligou. Peguei o telefone, ouvi sua respiração ansiosa, mas as lágrimas me impediram de responder. Saí correndo para o quintal, e sei que vc também ficou muito triste. Pouco tempo depois, chegou a notícia da sua morte - num hospital psiquiátrico numa cidade estranha. Senti-m e culpada por não ter te ajudado, mas eu tinha apenas quinze anos quando vc saiu de casa, e vinte quando morreu. Perdoe-me todas as vezes em que vc sofreu e em que eu não pude abraçá-lo. Perdoe-me a vergonha que eu sentia de vc nas reuniões de família - de havaianas, barba malfeita, barriga estourando os botões da camisa, olhos injetados de álcool. Quero confessar que amei todos os presentes que vc me deu, até mesmo a maçã e o pedaço de bolo comprados no bar, com um cartão sem envelope que dizia: Feliz aniversário, papae. Vc, o amigo que trouxe do bar e meus irmãos pequenos cantaram o Parabéns pra vc, enquanto eu lutava para não desabar em choro. Foi o último aniversário que passamos juntos. De uns anos pra cá, passei a comemorar seu aniversário, fazendo alguma coisa especial em sua homenagem no 5 de setembro: comprar flores, usar uma roupa nova, tomar um sorvete, ir ao cinema. Sou a única que faz isso. Ninguém mais se lembra de vc. Eu também te perdoo as palavras cruéis que disse à minha mãe diante de nós, seus filhos; as acusações que lhe fez sem piedade; as atitudes imaturas e rancorosas que visavam apenas ofendê-la. Eu te perdoo as palavras horríveis que vc disse na nossa frente, e que a desqualificavam como mulher e como mãe. Eu te perdoo a traição que fez a ela, logo após mudarmos para Brasília. Eu te perdoo por nos ter abandonado a primeira vez, quando eu tinha apenas cinco anos. Te perdoo pelos meses passados longe de nós, sem enviar recursos para nos sustentarmos nem palavras para aliviar a dor da sua falta. Eu te perdoo o abuso psicológico, moral e emocional que nos fez sofrer tanto. Ainda hoje, trazemos marcas desse abuso, cada um da sua maneira. Temos dificuldade em sermos felizes, em acreditarmos na leveza da vida, em confiarmos no mundo e nas pessoas. Eu te perdoo o desequilíbrio, a insensatez, a ignorância. Me perdoe a mágoa, a indiferença, a distância. Nosso amor é mais forte que tudo. Em meus sonhos, ele nunca deixou de existir.

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