Está tudo aqui

 


Luci Afonso

 

 

Está tudo aqui: a grama macia, o ipê-rosa, o céu puro azul, a nuvem de algodão, o canto da cigarra. Então, penso em você.

Quando te vi a primeira vez, reparei nos seus sapatos. Nunca tinha visto tão feios. Depois vi o lugar exato onde você começaria a perder o cabelo. Calvície precoce, pensei. Continuei te examinando enquanto você falava. Os olhos de amêndoa o faziam parecer meio japonês, e a pele morena jambo (inventei essa cor para sua pele) era um sinal de que você vinha de outra região. A boca bem desenhada guardava um sorriso confiante. A voz era grave, aveludada, e os óculos, redondinhos como os de John Lennon. Um quebradinho no dente lhe dava um ar desprotegido. A risada solta balançava todo o seu corpo e quase te levava às lágrimas.

As nuvens agora formam um elefante. Uma flor do ipê-rosa cai no meu rosto; dizem que é uma bênção da natureza. A cigarra dá uma pausa no canto.

Você mentiu sua idade, para parecer mais velho — nem tinha vinte anos. Eu menti a minha para parecer mais nova.  Fomos ao cinema, comemos pizza com vinho branco Liebfraumilch meio suave, como nossa história. Fomos a shows, exposições, galerias. Assistimos TV deitados no tapete e enrolados no cobertor. Jogamos cartas, você me ensinou xadrez. Ouvimos Beethoven. Você viajou de férias, eu fiquei. Eu fui para a praia, você voltou. Eu abandonei a praia para te encontrar. Era carnaval, todo mundo indo, só eu vindo — pra você.

Caem mais flores sobre mim. Um vento fresco começa a balançar o ipê-rosa. As cigarras voltam à cantoria.

Eu te dei sapatos novos, mas você só usava os feios (que você achava lindos). O primeiro presente que você me deu foi uma pequena lapiseira branca. O último foi uma corrente de ouro puro delicadíssima. Viajamos muito, fomos a Paris, como fazem os casais. Decidimos morar juntos. Você ajudou na mudança — um monte de livros e roupas. Mobília, só depois. Na inauguração da casa nova, comemos Miojo e dormimos no chão.

O céu agora está sem nuvens. O vento parou e deixou descansar o ipê-rosa. O coro das cigarras continua. 

Levanto-me e me dirijo ao aeroporto. É véspera de Natal. Está todo mundo indo, só você vindo, pra mim. Nosso amor continua, agora mais intenso, como uma sinfonia de Beethoven.


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