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Mostrando postagens de novembro, 2009

O massacre dos quirópteros

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Luci Afonso — Mãe, olha o passarinho preto! — Quieto, meu amor, já vai começar! O auditório estava lotado. O diretor dava as boas-vindas ao público e anunciava o primeiro item do programa. O menino só conseguia prestar atenção no bicho esquisito que surgira de repente do teto. Parecia um passarinho, mas tinha cara feia e asas sem penas. Apareceram mais dois e começaram a sobrevoar o palco. — Mãe, olha! – Desta vez, ela enxergou as pequenas criaturas, mas não conseguiu identificá-las. — Fique quietinho, meu bem, é parte do cenário, - mentiu. Estava concentrada no recital. À medida que transcorria a apresentação, outros saíram do telhado e passaram a voar também sobre a platéia. O salão estava muito quente e as portas, fechadas. Algumas pessoas notaram a estranha movimentação, até que um sussurro percorreu o recinto: — Morcegos! A partir daí, o público passou a observar os mamíferos voadores. Seu número parecia aumentar a cada salva de palmas. Um casal na última fileira tentou, discretam

As marcas do clichê

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Frases e expressões sedimentadas podem facilitar a comunicação, mas não contribuem para a renovação do idioma. Braulio Tavares Nos cursos de jornalismo, professores mandam a turma redigir um trabalho qualquer e depois vão anotando os clichês que aparecem: "Ferragens retorcidas... os bravos soldados do fogo... tórrido romance... corpo escultural... posição privilegiada...". São clichês, lugares-comuns, junções de substantivos e adjetivos que um dia, quando foram usadas pela primeiríssima vez, provocaram no leitor um agradável susto-de-novidade. Hoje, após milhões de repetições, são indício de preguiça mental. Os clichês são invisíveis e onipresentes e só damos pela sua existência quando estamos à sua procura. Basta escrevermos pensando apenas no assunto, e não na linguagem, para que eles desabrochem. Não os vemos porque eles fazem parte da paisagem, como os semáforos e os orelhões. São expressões prontas, "prêt-à-porter", que nos dispensam de pensar. Exemplo Por exem

O lugar do lugar-comum

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Em O Pai dos Burros, o jornalista e escritor Humberto Werneck reúne frases feitas que um dia já foram "novidade" Edgard Murano Tão involuntário quanto o uso de uma expressão clichê foi o nascimento de O Pai dos Burros (Arquipélago Editorial), coletânea feita por Humberto Werneck (do excelente O Santo Sujo , Cosac Naify, 2008). A obra surgiu da preocupação do jornalista com expressões que, de tão usadas, perdem a força, como "beleza efêmera", "mistura explosiva" e "sonora vaia". Cliché é termo de origem francesa para a chapa metálica usada na impressão gráfica. Na literatura, é o estereótipo, o chavão. A ideia de produzir sua própria coletânea do gênero é dos anos 70, quando Werneck partilhava, no Jornal da Tarde , dos preceitos do "jornalismo literário", que evitava a todo custo expressões batidas. — Por volta de 1972, comecei a anotar lugares-comuns, além de provérbios e expressões idiomáticas muito chapadas. Virou brincadeira, da qua

Sobre cavalos mansos e unicórnios

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Rubem Alves (...) Então você está confusa com os seus sentimentos. Ele apareceu tão de repente na sua vida, com aquele brilho manso no olhar, com aquela meiguice na voz, sem pedir coisa alguma, meio como um Pequeno Príncipe caído de um asteróide. Aí você me veio com a terrível pergunta, querendo diagnóstico. Você queria saber se você estava sofrendo da doença proibida — você, uma mulher de meia-idade, que foi sempre irrepreensível em pensamentos e ações. Aquela doença que põe tudo de cabeça para baixo e começa a querer começar a vida de novo, com outra pessoa, mesmo que já seja tarde demais e tudo aconteça só na imaginação. É muito fácil responder: “A presença dele traz alegria?”. Isso é tudo o que importa. Se trouxer só prazer, é fogo de palha. Prazer é coisa do corpo, só acontece quando o corpo do outro está lá. Alegria é coisa da alma, acontece só de lembrar. Você sofre, é claro, porque isso lhe parece infidelidade. Você continua a gostar do seu marido. Há bonitos sentimentos de ami

Comentário sobre "Velhota, eu?"

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De: Roberto Campos da Rocha Miranda Enviada em: terça-feira, 3 de novembro de 2009 08:23 Para: Luci Afonso de Oliveira Assunto: Adorei o "Velhota eu?" Cara Luci, Adorei seu livro e vejo que temos a veia cômica em comum. "O massacre dos quirópteros" é fantástico! Grande abraço, Roberto Roberto Miranda é autor do livro de crônicas e contos “Dança das horas”, Editora Thesaurus, 1995.

A última crônica

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Fernando Sabino A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos ac

Ouse

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Lou Andreas-Salomé Ouse, ouse… o use tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar a sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida dar-lhe-á poucos presentes. Se quer uma vida, aprenda … a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!