Doce invasão

 



Luci Afonso

 

O dia começa, é preciso viver. A lua ainda não se recolheu. O sol acorda aos poucos, como uma criança, e provoca no muro ocre um espetáculo de luz.  Só dura um instante. Os jovens ainda dormem o sono ingênuo.  A casa está em silêncio, exceto pelos gatos, que miam para sair. Eles se acostumaram com o espaço e a liberdade, e agora os exigem assim que amanhece.

Saio ao jardim, meu primeiro alimento diário. Nasceram quatro acerolas, uma delas já caída na gram. Apareceram rosas amarelas em meio às vermelhas. Não me lembrava de tê-las plantado ali. O pé de manacá branco-lilás se encheu de flores. Os amores-perfeitos estão abraçadinhos. As sementes de alamanda não vingaram. Precisarei pedir outras ao vizinho da esquina.

Nasceu mais uma flor-de-cera. O painel de treliça está cheio delas. Parecem minúsculos doces de aniz tingido cor-de-rosa, capturando o olhar e insinuando o toque. A aparente delicadeza esconde uma vontade férrea. Agarra-se com força a qualquer suporte e sobe nele com determinação. Difícil impedi-la de se alastrar e ocupar os espaços vagos. Em vez de enfraquecer a seiva das outras plantas, essa doce invasão a fortalece com o desejo de se expandir para outros cantos do jardim.

Passo ao meu segundo alimento diário. Nasceram duas crônicas de sementes antigas. Estou plena delas. Surgiram outras, por acaso, semeadas pelo tempo. Meu texto se encheu de significados. As raízes do silêncio não vingaram. Não pedirei outras a ninguém.

Os minúsculos quase-amores, que perturbavam a emoção e se alastravam no peito, não sobrevivem à doce invasão da palavra.  


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