10 Considerações sobre Poesia



Conselhos que sempre dou em minhas oficinas

Marco Antunes

1-Jogos de palavras são um primarismo batido. Nelson Rodrigues aconselhava os novos autores a não fazerem “literatice” e completava que o brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra. Está certo! Coisas como Encantadora Mente e tais são de um simplismo constrangedor. Costumo dizer em aula que o adorável versinho de Quintana “Eles passarão, eu passarinho” é um lindo achado, mas raro, raríssimo e não é para amadores, poucas vezes dá certo.

2-Há quem diga que poesia é apenas música, mas contra isso tem a voz do mestre modernista Bandeira: “Clame a saparia em críticas céticas: ‘Não há mais poesia!’ Mas há artes poéticas”. É isso: musicalidade, com ritmo fixo ou contextual, é importante, mas há poemas como os de Whitman, Álvaro de Campos e outros que se fazem com ritmo dramático de monólogo ou solilóquio. Apenas musicalidade com ritmo e rima dificilmente geram um bom poema. Drummond, por exemplo, várias vezes compromete a forma fixa do ritmo para não comprometer o sentido desejado.

3-Sentido é essencial. Nada obsta que seja um sentido surreal ou abstrato, mas sem algum norte semântico o poema acaba em futilidade. Vejam-se os versos seguintes:

“Frevo Mulher
Zé Ramalho

Quantos aqui ouvem
Os olhos eram de fé
Quantos elementos
Amam aquela mulher

Quantos homens eram inverno
Outros verão
Outonos caindo secos
No solo da minha mão

Gemeram entre cabeças
A ponta do esporão
A folha do não-me-toque
E o medo da solidão

Veneno meu companheiro
Desata no cantador
E desemboca no primeiro
Açude do meu amor

É quando o vento sacode
A cabeleira
A trança toda vermelha
Um olho cego vagueia
Procurando por um...”

É uma bela composição entre o surreal e o abstrato, apoiado em forte ritmo e melodia, não se pode dizer que tenha um sentido imediatamente perceptível fora da ambiência poética, mas as metáforas da feminilidade deixam-se encontrar em semas de exegese subjetiva.

3- Vejamos os conselhos de Drummond aos poetas:

“Procura da Poesia
Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”

Fantástico poema, não é? E, no entanto, todos os conselhos dados na primeira fase do poema, antes do imperativo “penetra”, são constantemente desobedecidos por todos os bons poetas, principalmente por Drummond que parece ter listado quase todos os seus temas mais recorrentes. Então, o que o poeta quer dizer realmente? Que a poesia passa por tudo isso, mas nada disso é, por si e em si, o objeto da poesia. No que se segue ao “penetra”, aí sim, está o verdadeiro conselho. O de que a poesia é elaboração de consciência pela estética da palavra em sua subjetividade, cujos segredos são o imperativo da investigação poética.

4- Nada mais odioso do que o excesso de figuras e a exuberância de palavras e sintaxes. Os melhores poemas mostram especial plausibilidade de fala, combinando com o padrão de fala contemporânea no ambiente linguístico do autor que, ressalvados os índices de estilo, aconselha-se sejam naturais e melodicamente reconhecidos na prática social da linguagem no ambiente cultural circundante.

“Porquinho-da-Índia – Manuel Bandeira

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”

Ou ainda:
“PEREGRINAÇÃO [1]

O córrego é o mesmo,
Mesma, aquela árvore,
A casa, o jardim.

Meus passos a esmo
(Os passos e o espírito)
Vão pelo passado,
Ai tão devastado,
Recolhendo triste
Tudo quanto existe
Ainda ali de mim
— Mim daqueles tempos!”

5- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada. O bom poema é como a boa piada, adiantar seu efeito (ou o efeito de uma figura) antes do momento de sua revelação compromete o impacto. É típico do poeta iniciante cair nessa armadilha, destacando artificiosamente esse ponto de interesse e dando bandeira de estilo. O truque é fazer parecer acidental, sem intenção, apenas natural. O poeta aprendiz em geral quer supervalorizar o achado e nisso compromete a fruição. Drummond é impecável nesse particular.

“Preso à minha classe e a algumas roupas, Vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.”

6- Um bom conceito estrutural do conteúdo torna forma e desenvolvimento apenas consequência desse bom preparo anterior à escrita.

“Uma Canção desnaturada
Chico Buarque

Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder

Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim

Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins

Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído.”

7- A propriedade dramática pode ser alcançada com a personagem presente no eu-lírico, que pode garantir o poema excepcional com um mínimo de artifícios. Só para raros estros:

“Álvaro de Campos

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.
 
8- O simples (não o comum, vulgar ou previsível) pode ser o maior truque:

“Lua cheia – Cassiano Ricardo

Boião de leite
que a Noite leva
com mãos de treva
pra não sei quem beber.

E que, embora levado
muito devagarzinho,
vai derramando pingos brancos
pelo caminho. . .”

Ou ainda:
“O Relógio – Cassiano Ricardo

"Diante de coisa tão doida
Conservemo-nos serenos

Cada minuto da vida
Nunca é mais, é sempre menos

Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser

Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer."

9- Um tema periférico pode levar você direto ao centro do alvo poético. Veja em Cecília a observação dos cavalos da inconfidência em que o próprio cerne da tragédia se apresenta:

“Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranqüilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
- calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
- rijos, destemidos, velozes -
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.
Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.
E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.
Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranqüilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
- calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
- rijos, destemidos, velozes -
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.
Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.
E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.
Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.
Eles eram muitos cavalos,
mas ninguêm mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem...
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
- Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo...
e a rolar pelos precipícios...”

10- A elipse, a omissão significativa e a expressão pelo vazio (truque preferido de João Cabral de Melo Neto) se bem realizadas podem elevar o poema a um nível de design poético realmente superior.

“De um avião - João Cabral de Melo Neto

1.

Se vem por círculos na viagem
Pernambuco – Todos-os-Foras.
Se vem numa espiral
da coisa à sua memória.

O primeiro círculo é quando
o avião no campo do Ibura.
Quando tenso na pista
o salto ele calcula.

Está o Ibura onde coqueiros,
onde cajueiros, Guararapes.
Contudo já parece
em vitrine a paisagem.

O aeroporto onde o mar e mangues,
onde o mareiro e a maresia.
Mas ar condicionado,
mas enlatada brisa.

De Pernambuco, no aeroporto,
a vista já pouco recolhe.
É o mesmo, recoberto,
porém, de celulóide.

Nos aeroportos sempre as coisas
se distanciam ou celofane.
No do Ibura até mesmo
a água doída, o mangue.

Agora o avião (um saltador)
caminha sobre o trampolim.
Vai saltar-me de fora
para mais fora daqui.

No primeiro círculo, em terra
de Pernambuco já me estranho.
Já estou fora, aqui dentro
deste pássaro manso.

2.

No segundo círculo, o avião
vai de gavião por sobre o campo.
A vista tenta dar
um último balanço.

A paisagem que bem conheço
por tê-la vestido por dentro,
mostra, a pequena altura
coisas que ainda entendo.

Que reconheço na distância
de vidros lúcidos, ainda:
eis o incêndio de ocre
que à tarde queima Olinda;

eis todos os verdes do verde,
submarinos, sobremarinos:
dos dois lados da praia
estendem-se indistintos;

eis os arrabaldes, dispostos
numa constelação casual;
eis o mar debruado
pela renda de sal;

e eis o Recife, sol de todo
o sistema solar da planície:
daqui é uma estrela
ou uma aranha, o Recife,

se estrela, que estende seus dedos,
se aranha, que estende sua teia:
que estende sua cidade
por entre a lama negra.

(Já a distância sobre seus vidros
passou outra mão de verniz:
ainda enxergo o homem,
não mais sua cicatriz).

3.

O avião agora mais alto
se eleva ao círculo terceiro,
folha de papel de seda
velando agora o texto.

Uma paisagem mais serena,
mais estruturada, se avista:
todas, de um avião,
são de mapa ou cubistas.

A paisagem, ainda a mesma,
parece agora noutra língua:
numa língua mais culta,
sem vozes de cozinha.

Para língua mais diplomática
a paisagem foi traduzida:
onde as casas são brancas
e o branco, fresca tinta;

onde as estradas são geométricas
e a terra não precisa limpa
e é maternal o vulto
obeso das usinas;

onde a água morta do alagado
passa a chamar-se de marema
e nada tem de gosma,
morna e carnal, de lesma.

Se daqui se visse seu homem,
homem mesmo pareceria:
mas ele é o primeiro
que a distância eneblina

para não corromper, decerto,
o texto sempre mais idílico
que o avião dá a ler
de um a outro círculo.

4.

Num círculo ainda mais alto
o avião aponta pelo mar.
Cresce a distância com
seguidas capas de ar.

Primeiro, a distância se põe
a fazer mais simples as linhas;
os recifes e a praia
com régua pura risca.

A cidade toda é quadrada
em paginação de jornal,
e os rios, em corretos
meandros de metal.

Depois, a distância suprime
por completo todas as linhas;
restam somente cores
justapostas sem fímbria:

o amarelo da cana verde,
o vermelho do ocre amarelo,
verde do mar azul,
roxo do chão vermelho.

Até que num círculo mais alto
essas mesmas cores reduz:
à sua chama interna,
comum, à sua luz,

que nas cores de Pernambuco
é uma chama lavada e alegre,
tão viva que de longe
sua ponta ainda fere,

até que enfim todas as cores
das coisas que são Pernambuco
fundem-se todas nessa
luz de diamante puro.

5.

Penetra por fim o avião
pelos círculos derradeiros.
A ponta do diamante
perdeu-se por inteiro.

Até mesmo a luz do diamante
findou cegando-se no longe.
Sua ponta já rombuda
tanto chumbo não rompe.

Tanto chumbo como o que cobre
todas as coisas aqui fora.
Já agora Pernambuco
é o que coube a memória.

Já para encontrar Pernambuco
o melhor é fechar os olhos
e buscar na lembrança
o diamante ilusório.

É buscar aquele diamante
em que o vi se cristalizar,
que rompeu a distância
com dureza solar;

refazer aquele diamante
que vi apurar-se cá de cima,
que de lama e de sol
compôs luz incisiva;

desfazer aquele diamante
a partir do que o fez por último,
de fora para dentro,
da casca para o fundo,

até aquilo que, por primeiro
se apagar, ficou mais oculto:
o homem, que é o núcleo
do núcleo do seu núcleo.”




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