Quando Deus é servido
Luci Afonso
Poeta é um ser abençoado. Por Deus, pela natureza,
pelo universo. Guiado pela sincronicidade, que muitos chamam de acaso. Poeta é
um ser generoso. Recolhe palavras e distribui significados. Experimenta dores e
põe fim a sofrimentos. Enfrenta a morte e semeia sobrevivência.
Poeta é, por exemplo, Manuel Bandeira, que escreveu
Vou-me embora pra Pasárgada num
momento de grande desânimo. Um dos versos mais conhecidos da literatura
brasileira, e que dá ânimo a quem o lê, pela expectativa de ir a um lugar onde
simplesmente se é feliz.
Diagnosticado com tuberculose aos 17 anos, numa
época em que a doença era praticamente incurável, ouviu do médico: Só resta tocar um tango argentino — naturalmente,
o médico não sabia que o acaso protege os poetas. Mesmo com a sentença de morte,
Bandeira viveu longos anos de pura poesia.
Nascido no Recife, Pernambuco, passou a infância um
mundo encantado, onde tudo parecia
impregnado de eternidade. Nesse mundo, ele criou seus personagens mais
famosos, como Irene:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Teve grande influência do avô paterno, que lhe ensinou o amor
pelas artes e pela cultura, e do pai, que desejava para o filho a profissão de
arquiteto. Chegou a começar o
curso, mas a doença o fez abandonar o sonho:
Criou-me, desde eu menino.
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Manuel
Bandeira tornou-se poeta graças ao acaso. Enquanto peregrinava por sanatórios
no Brasil e no exterior, buscando amenizar a doença que o atormentava, ele
encontrou na poesia a forma máxima de expressar sua angústia e de abrandar o
temor da morte. As sucessivas internações despertaram nele o desejo de publicar
um livro de versos, que escrevia desde criança. O poeta dá assim uma lição de
humildade e grandeza, afirmando a vitória do espírito sobre o corpo já no seu
primeiro livro, A Cinza das Horas.
Foi um dos precursores do Modernismo, ao defender o retorno à simplicidade poética e o
fim das convenções que engessavam a poesia brasileira. No poema Os Sapos, definido como o “Hino Nacional
do Modernismo”, satiriza o rigor parnasiano e propõe a liberdade de composição
poética com linguagem simples e cotidiana. Ao reproduzir a voz do povo, ensinou
que toda palavra, por mais comum que pareça, tem carga poética. Mostrou também
que, ao abrir as portas ao acaso, seus poemas nasciam do inconsciente, sem
premeditação, como um relâmpago. Por
isso, com o tempo, dizia ele, resignara-se à condição de poeta quando Deus é servido.
O reconhecimento da obra de Manuel Bandeira culminou
na indicação para a Academia Brasileira de Letras, em 1940. Faleceu no Rio de
Janeiro, aos 82 anos, tornando-se um dos mais queridos poetas do Brasil e, para
nossa felicidade, deixando o legado de uma vida inteira que podia não ter sido
e que foi.
(Imagem: Retrato de Manuel Bandeira por Candido Portinari)
(Imagem: Retrato de Manuel Bandeira por Candido Portinari)
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