Chuva Lágrima
A chuva fresca como uma lágrima
inaugura a manhã de domingo. A mulher caminha silenciosa ao seu próprio
encontro. Não lembra o que sonhou, apenas o que deseja: o amor incondicional
por si mesma. Os ipês florescem, as crianças nascem, as mulheres amam, os doentes
morrem. O mundo se renova dentro e fora. É vida demais para um peito só.
Não há coerência no homem. Ruim
sem ele, pior com ele. O fim acontece no mesmo lugar do começo, completando um angustiante
ciclo de apego e autoanulação. O tempo parece imóvel no muro desbotado em
frente à janela do quarto. O gato acorda no meio da tarde, procura água e
comida e volta a dormir.
Os ruídos na casa da tia são os
mesmos, mas parecem distantes: as vozes distorcidas na televisão, o som do
telefone que toca sem parar, a conversa da visita que se alonga na sala.
Terá de ir sozinha à rodoviária.
O homem não vem buscá-la, num gesto final de indelicadeza. Ela se encolhe
debaixo do cobertor, reunindo forças para a volta. No ônibus, observa sonolenta
as ruas antigas, que daí para a frente percorrerá apenas em sonho e saudade. É
a última vez que faz esta viagem. Começa a chover; ela mergulha num sono
profundo e indolor. Só vai despertar quando estiver bem longe, a salvo do primo,
do pai, do tio, do homem, do homem.
Imagem: "Semente Sã", de Luci Afonso
Imagem: "Semente Sã", de Luci Afonso
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