Querida estranha
Luci Afonso
De repente me deparo com essa
querida estranha dentro de mim. Onde foi que ela andou? De repente me
surpreendo no espelho com a pele enrugada. Como foi que envelheci? De repente
me vejo através de olhos imensos. Quando foi que eles se abriram?
Lá fora a seca embeleza o céu
azul-abençoado. O pôr do sol se torna arco-íris, a grama tem mil tons de
marrom. A mulher que caminha devagar sente a vida rebrotando no peito e não
sabe explicar por que hoje acordou sentindo um amor absoluto por ela mesma. O
cheiro das coisas a penetrou como nunca, e as várias camadas de pele
impregnaram-se dos afagos do mundo. Imagina-se retocada de maquiagem, os dentes
muito brancos, o cabelo cinza. Sabe que agora se conhece, se entende e se ama.
O vestido para a festa é de cetim
vermelho. Tem uma fenda na coxa direita e um decote que mostra parte dos seios
ainda firmes. Enfim chegou aos sessenta, inteira e possuída de si mesma. Deixa
que os redemoinhos da seca levem seu homem para longe. Dança na fogueira de
julho, enquanto o mundo se refaz. O universo assiste, deslumbrado, aos passos
vertiginosos da dançarina de fogo.
Imagem de Luci Afonso (detalhe)
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