Sujou, lavou



Luci Afonso

Ele chegou ao meio-dia, como de costume, para fazer o almoço. Daí a instantes, me chamou:
— Tenho uma surpresa pra você — ele disse com calma. — Aqui na cozinha.
Levantei-me depressa e corri para ver o que era.
— Ali no chão — ele mostrou.
Ele colocara uma pilha de louça para lavar dentro de um balde.
— Você sabe a regra: sujou, lavou. Eu não faço almoço com a pia suja.

Eu me apaixonara por meu primo numa madrugada fria de Ano Novo. Estávamos sentados debaixo da Árvore dos Enforcados, um ponto alto de onde se avistava a cidade adormecida. A neblina ofuscava as luzes lá embaixo, tornando o momento mágico. A árvore, ponto turístico muito visitado, morreu e foi cortada ano passado. Nada resta do lamento dos escravos que, segundo a lenda, eram enforcados nos galhos grossos e nus.
Eu também morri nos três anos que se seguiram. Meu corpo engordou, meu cabelo secou, meu sorriso adoeceu. Não escrevi uma palavra sequer. Não procurei nenhum amigo. Em busca da paixão que, eu acreditava, transformaria minha vida, eu passava longas noites no ônibus, a cada quinze dias. O reencontro era um sonho, a despedida, um pesadelo. Tamo sempre junto, dizia o bilhete no buquê de rosas vermelhas que ele me deu logo no início.
Voltei a morar na infância que habitava mesmo adulta. Caminhei pelas ladeiras do bairro onde nasci e me sentei na praça em que brincávamos quando crianças. Minha antiga casa agora era um restaurante; a casa da minha avó deu lugar a um edifício de onde se vê a estátua do Cristo Redentor.
Eu amava ora o menino catarrento, que pedia para andar na minha bicicleta, ora o rapaz corajoso, que sustentara a família durante anos. Às vezes, ele era o anjo que ajudara meu pai abandonado nas ruas, às vezes, o homem que satisfazia todos os meus desejos. Quis reconstruí-lo à minha imagem. Tornei-me mãe, irmã, amiga, amante.
Transformei meu primo em elo perdido, em testemunha primitiva da minha existência. Ele não suportou o peso dessa tarefa. Ninguém suportaria. Nossas carências formaram um nó indissolúvel, que nos exauriu e que ainda nos aprisiona em rompimentos e recomeços intermináveis.
O temperamento explosivo de um e impulsivo do outro também contribuiu para nos afastarmos, e a ilusão de infância foi desfeita com palavras duras e ironias constantes. Recolhi as gotas de afeto até não me reconhecer mais. A paixão se foi. Então, vim embora pela primeira vez. As malas já estavam prontas.
Finalmente, estou de volta ao centro de mim. Encontrei a sala vazia, a poltrona riscada pelo gato, a almofada de costura desfeita, vomitando o recheio branco de falso algodão. Fui surpreendida por um adulto que se diz meu filho e que sentiu minha ausência. Há louça suja na pia da cozinha, mas não preciso lavá-la. Aqui não há regras nem punições.

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