Pré-idosa, eu?



Luci Afonso

Minha agenda está cheia: consultas, exames, psicoterapia, acupuntura, ioga, massagem, caminhada. Adotei uma política de comparecimento a todos os compromissos e, para dar conta de tudo, matriculei-me num curso para redução do estresse. 
Manhã de segunda: endócrino. Faz muito calor. Visto uma superpantalona estampada em tons de rosa, uma regata dry fit e um chapéu de tecido rosa. O jovem médico não é de muita conversa. Ele me cumprimenta e estranha minha roupa:
— A senhora é hippie? — ele brinca.
— Não, eu sou é empoderada.
— Empoeirada? — ele dá um risinho.
— Empoderada: independente, resolvida. Faço o que eu quero, visto o que eu quero, não ligo para a opinião dos outros.
— Ah!  
Ele começa a analisar o resultado dos exames no computador, enquanto eu observo a vista do décimo andar.
— A senhora trouxe um livro... — ele pergunta, de repente.
— O senhor sabe que eu sou escritora?
— ...pra ler enquanto vejo os exames? Pode demorar um pouco.
— Demorado é que é bom — digo sem pensar. Meu rosto fica vermelho. O rapaz me olha com seriedade.
Baixo os olhos e tiro da bolsa o livro “Quem me roubou de mim”, indicado pela psicoterapeuta, assim como “Codependência Afetiva”, “O Cavaleiro na Armadura” e “Mulheres que amam demais” — espero sobreviver a tanta verdade de uma só vez.
— A senhora já tomou as vacinas? — ele quer saber. 
— Que vacinas?
— Para idosos.
  Ainda não sou idosa.
— Quantos anos a senhora tem mesmo?
  Cinquenta e sete.
— Então, a senhora é pré-idosa. Precisa se proteger contra a gripe, a Hepatite B e a tuberculose.
Fico paralisada. Mais uma categoria para enquadrar mulheres pós-maduras: Prazer, sou a Pré-Idosa Afonso. É uma condenação. Assim como os pré-diabéticos se tornarão diabéticos, os pré-idosos se tornarão idosos, definição que já implica restrições e limites diversos. Pré-idosa é..., tenho vontade de dizer.
O médico não percebe a crueldade que acabou de praticar.
— Suas comorbidades exigem cuidado — ele continua.
— Minhas o quê?
— Comorbidades. Doenças simultâneas.
— Ah!
— A senhora tem o cartão de vacinação?
— Não tenho mais.
— Alguma alergia?
A médico chato, penso.
 — Não? Muito bem. Vamos em frente. A senhora já fez colonoscopia?
— Faço desde os cinquenta — preciso mentir, senão ele vai pedir esse exame horroroso.
— Muito bem! — ele volta à tela do computador e eu, ao livro. Leio algumas páginas. Quando levanto os olhos, ele está me encarando:
— E a dieta, como vai?
— Vai bem — respondo, sem entrar em detalhes.
— Já perdeu quantos quilos?
— Dez — é a mais pura verdade.
— Ótimo, mas pode melhorar. Vou passar um remédio caso a senhora pare de emagrecer. Pode causar diarreia forte, mas a senhora se acostuma. Acontece com 90% das pacientes: primeiro emagrecem, depois param de emagrecer, e finalmente voltam a engordar.
Ele me acompanha até a porta.
— Volte daqui a três meses.
Não piso mais aqui, penso, virando-me bruscamente e batendo a testa com toda a força na porta de vidro. Antes de desmaiar, ouço o médico explicando aos socorristas:
— Pré-idosa... comorbidades... obesidade grave... e, pelo que pude observar, um início de demência.
Demente é... — são minhas primeiras palavras ao acordar na ala de pré-idosos do hospital.

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