Vamos brindar


Luci Afonso

Ela passa o café, põe na xícara e vai até a janela rústica da cozinha, que dá vista para o quintal. Veste uma blusa branca de algodão e soltou o cabelo. Acabou de escrever um poema. Observa, ao longo do córrego que atravessa a fazenda, os galhos das árvores balançando quase em câmera lenta. Não há dúvida em seu coração.  

A notícia chega pelas redes sociais. Só pode ser engano: após lutar quarenta dias na UTI devido a um infarto, morreu a jovem poeta de fala mansa, voz de veludo, sorriso constante. Em seguida, o filho, que não suportou viver sem a mãe, se matou e foi sepultado junto dela. 
Meio distraída, meio maluca, como são os poetas, quando apresentava um sarau, não tinha hora para começar, não seguia nenhuma ordem aparente e terminava sempre em forró. Gostava tanto de falar em público que às vezes era preciso interrompê-la para que outros tivessem vez. Amava as pessoas humildes, de pouca instrução, pois muitas delas nunca haviam tocado num livro. Explicava-lhes, com paciência, o que era poesia, e extraía delas algum poema que haviam escrito sem saber. Nessas ocasiões, fazia brincadeiras e pegadinhas quase infantis:
— Pra que serve o bule debaixo da cama?
— Para colocar água, chá, café... — respondiam alguns.
— Não, pra fazer xixi!  —  ela brincava.
— Não dá! —  protestavam.
— No meu bule, dá! — ela concluía, satisfeita em enganar a plateia.
Quando chegou ao nosso grupo literário, já fazia parte de uma tribo que levava arte aos recantos da cidade. Além dos próprios poemas, gostava de recitar a obra de poetas locais e, principalmente, de Vinicius: De tudo ao meu amor serei atento...
Encontramo-nos ao longo dos anos, sempre em nome da poesia. Na última vez, numa feira no Setor Militar Urbano. Ela trouxe seu recente Humanidades, que quase prefaciei, não tivesse ela me pedido três dias antes do lançamento. Trazia também antologias do projeto que realizara em lugares carentes, com a participação de escritores brasilienses.
Enquanto a feira prosseguia, ela se levantava, inquieta, para arrumar a mesa e chamar os fregueses que passavam. Estava triste, mas existe melhor companhia que a de um poeta, mesmo entristecido?
Conversamos sobre amores, desamores e traições. O aparelho nos dentes deformava seu sorriso e dificultava sua fala.
— Queria voltar ao encantamento do início — ela disse.
— Eu também — respondi. Ambas vivíamos relacionamentos infelizes que haviam começado de forma alegre e romântica, e não tínhamos coragem de cortar os vínculos que nos fragilizavam.
Ao final do evento, ela comprou duas doses de espumante barato para celebrarmos o momento.
— Vamos brindar! — ela convidou, estendendo as taças de plástico.
— Mas são de plástico! —  observei.
— Qual o problema?
— Elas não fazem tintim!
— Fazem, sim! Tintim, tintim, tintim! — ela brincou, encostando sua taça na minha e dançando ao som do heavy rock que vinha do palco.
Quando os visitantes diminuíram, decidimos ir embora. Ela me ofereceu carona e me ajudou a carregar as pesadas sacolas até o carro. Na saída, encontramos seu filho, que acabara de chegar para o show de rock. Esperei no portão, enquanto ela foi até o rapaz que eu conhecera menino, quando ele declamava os poemas da mãe em nossos encontros.
— Queria dinheiro para o cachorro-quente! Vê se pode! Essas crianças...
No estacionamento do meu prédio, ela abriu o porta-malas e me deu um vidro de mel produzido na fazenda:
— Para adoçar a vida — ela disse, a língua torturada pelo aparelho de metal. Convidei-a para subir e tomar um café, mas ela disse que estava tarde.
— Está cedo. Não vá ainda —  pedi.

Ela não ouviu, mas acenou antes de entrar no carro. A distância, seu sorriso pareceu quase liberto.

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