Espaços da vida




Luci Afonso



— Tia, quer ganhar um dinheirinho? Preciso de revisor para minha dissertação. Tomara que você aceite — diz meu sobrinho Leonardo, após o almoço de domingo.
—Minha memória não anda muito boa, posso deixar passar algum erro — respondo.
— Não tem problema, é só um pente fino. Tomara que haja poucos erros!
— Então, tá.
— Quanto é, tia?
— Um beijo e um abraço.
— Valeu. Tô mandando. São só 274 páginas...
— Só?
— Bem, na verdade, 274 são dois capítulos. Tomara que eu termine os outros dois a tempo!
— Pra quando você precisa?
— Pro dia 15. Tomara que você consiga!
— Deixa comigo!
Leonardo, ou Leozinho, como é chamado pela mãe, descende dos guerreiros de Esparta: depois de se formar em Arquitetura, escolheu um tema difícil e pouco estudado na área acadêmica — os espaços da morte.  Percorreu cemitérios e casas funerárias, entrevistou servidores da FUNAI e do Patrimônio Histórico. Fez toda a dissertação na biblioteca da universidade, porque não podia comprar os livros para a pesquisa. Durante meses, seguiu uma dura rotina: chegava cedo e só se levantava para almoçar e jantar no Restaurante Universitário. Mergulhou no tema. Passou a usar camisetas com caveiras, fez tatuagens de caveiras, decorou seu quarto com caveiras. Seu orientador é um carrasco, mas está satisfeito com o resultado. A Banca já está marcada. Cada examinador receberá de presente uma caveira de chocolate. Logo em seguida, ele viaja para a Irlanda. Pretende nunca mais voltar ao Brasil.
— E se te chamarem para dar aula na universidade? — perguntei um dia. Da Irlanda, eu só conhecia os duendes verdes e o clima frio.
— Antes preciso do doutorado, tia. Tomara que não me chamem!
— Mas e se te chamarem? — insisti.
— Nem assim eu volto — ele respondeu, convicto. — Bom, tomara que eu não volte!
Não é a primeira vez que um texto alheio surge num momento delicado e que palavras outras dão voz à minha. Não é a primeira vez que meu sobrinho e eu compartilhamos espaços sensíveis. Já nos ajudamos em crises, um amparando o outro, um trazendo o outro à superfície. Desta vez, as caveiras são imagens e a morte é de papel. Ele a encara de perto, para se descobrir mais forte que ela. Meu jovem guia vai à frente, descobrindo enterramentos e desvendando crenças. Eu sigo seus passos-palavras, sem medo dos túneis escuros nem dos buracos fundos. Descubro um escritor de estilo elegante, que raramente comete erros e que emociona pela clareza e profundidade de expressão.
O texto completo chega a 400 páginas. Fui citada nos agradecimentos e na abertura de um capítulo, com trecho de um livro meu. Fecho-me no escritório para realizar a tarefa. Os gatos arranham a porta, mas não os deixo entrar. O telefone toca, não atendo. O mundo vai ter de esperar.
— Você manda bem na revisão, hein, tia? Tomara que não tenha dado muito trabalho! — diz ele, me abraçando, quando entrego o arquivo.
— Faço o que posso — brinco, com falsa modéstia.
A Banca acontece na primeira semana de junho. São muitos os preparativos, é grande a ansiedade. Estamos todos na torcida. Ele é aprovado com louvor e se torna um novo Mestre da Academia. Dias depois, ele nos acena na escada do avião, ao deixar o Brasil.
Passados oito meses, Leonardo volta ao país e descobre aqui mesmo a vocação de professor universitário. Agora, em vez de percorrer os espaços da morte, ele trilha os espaços da vida, onde está seguro e feliz. Tomara eu possa acompanhá-lo!  

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