É crônica tudo aquilo que for manchete na alma do cronista
Prefácio à primeira edição de Velhota, eu?
Marco
Antunes
A melhor definição que se pode oferecer de crônica vale-se da característica
fortemente jornalística do gênero para afirmar que é crônica tudo aquilo que
for manchete na alma do cronista.
Desabem sobre o mundo as torres da insensatez humana, para o cronista, no
entanto, sem traumas ou vergonha, a grande notícia do dia pode ter sido a morte
de um simples quati na garagem de seu prédio. Se a dor do escritor não pode,
sob certa medida, competir com o peso dramático das muitas vidas que se perdem
nas longas e insanas guerras mundo afora, pode, por seu turno, ostentar a
certeza de toda a dor sobrestante de suas batalhas pessoais.
Que pode o mundo contra seus olhos? Ou, mais grave, que peso há de ter a
dor do mundo se lhe dói de amor um coração? Repórter desse drama microscópico,
ele, o cronista, nos envia do fronte o desesperado relato de uma flor que
sucumbe à indiferença da tarde. É essa sua manchete! E que não lhe julguem os
que não ponderam a métrica subjetiva da sensação de um poeta!
A crônica é notícia de que participa o repórter, permite-se-lhe, sem
deméritos, imiscuir-se no fato, dobrá-lo ao seu talante, interpretá-lo, redimensioná-lo,
pervertê-lo com o prisma de seu sujeito. Permite-se-lhe filtrá-lo no humor mais
cruel, no lirismo mais despudorado, na menos recomendável fantasia. Liberdade
dos periódicos da alma: Liberalismo de seus jornalistas!
Pois é nesse gênero sempre tão contemporâneo, sempre tão mais livre que
os rigores da poesia, que hoje nasce para as prensas Luci Afonso.
Ela surpreende a cada página, e, se a virmos, já antes da primeira. Quem
lhe vê pela primeira vez, em geral, engana-se de sua aparência doce e meiga e
lhe vai ler com apetites de poesia feminil, letras de moça antiga. Que ilusão!
E que decepção! As suas crônicas são vazadas em humor impiedoso e, não
raramente, sarcástico.
Luci tem um senso de observação da realidade que não permite
fragilidades, não recebe de bom grado suscetibilidades morais ou expectativas
de sentimentos previsíveis.
Abrir este livro é aceitar um convite para o território dangerosíssimo da
verdade. Ela não se ilude com aparências convencionais e não as referenda. Tem
olho clínico para a hipocrisia social e a delata sem cerimônia ou lubrificação
de eufemismos. Aqui, vale o que está escrito. E como está bem escrito!
Claro que a poesia e o lirismo estão convidados em episódios como “O
Amigo Argentino”; “A Bênção”; “Celebração”; “Batismo” e “Passeio no Bosque
Encantado”, mas mesmo aí o viés da notícia é a penetrante percepção do mundo
que tem a autora. Nisso, mais um mérito da escritora, o elemento lírico é
instrumento, ferramenta habilmente usada, não fim, como quem procura o belo
pelo belo, tentativa que quase sempre resulta em pieguice e sentimentalismo
vulgar. Não, não espere isso em texto de Luci Afonso. O Belo, quando se
apresenta, está na sua precisa função na sintaxe dos eventos. Ele é descoberta
da autora e do leitor ao mesmo tempo, não invenção ou elaboração daquela.
Mas a grande personagem das crônicas é mesmo a percepção dessa mulher
moderna, ora trabalhadora, ora mãe, ora artista, ora cidadã, ora
uma-na-multidão, ora protagonista do drama e ora mera observadora que nos
convida a partilhar de sua particularíssima seleção do cotidiano e, como amiga
íntima de seu leitor, faz-se comentarista privilegiada da ação humana.
Quem é essa mulher de meia-idade no centro de um mundo que nos dá conta
de tudo? Quem é essa mulher que põe o dedo na ferida da brutalidade masculina,
no corte do preconceito, no ardor de nossos pequenos descuidos que ferem e
machucam sua alma? Quem é essa mulher armada de sua pena contra o mundo? Quem é
essa senhora que se vinga do incauto que lhe cruza sem cuidado ou delicadeza o
caminho com boa literatura e franca denúncia ou rasgada ironia?
É ela? Luci? Foi a ela que chamaram de velhota e barriguda? Mas, então,
por que me sinto cúmplice da ironia? Eu, um homem também de meia-idade. Por que
me sinto perfeitamente contemplado com as notícias e comentários adjacentes do
periódico de que ela é repórter?
Esse é o segredo dos bons cronistas — e Luci, desde já, é uma entre eles:
sabem ser pessoais e universais, sabem pedir cumplicidade, sabem nos colocar na
cena, sabem nos sugerir, com proveito, o que devemos sentir. Ah! Como ela sabe!
Sabem todos os grandes do gênero nos convidar a entrar na própria pele, do
jeitinho que ela soube em “Antiginástica”; “Vaga Privativa”; “Barriguda”;
“Agonia e Êxtase” e “Os Soldadinhos de Chumbo”.
Ela se apresenta como intérprete de nossa geração, de nossas dúvidas, de
nossas pequenas e grandes decepções, de nossa perplexidade, de nosso tempo, de
nossa solidão.
Claro que alguns textos são mais afiados e uns poucos menos
compartilháveis por estarem mais centrados no eu da cronista, mas a
originalidade e força de composições como “Diário” proclamam que está aqui uma
cronista que, por si só, prova a vitalidade deste gênero que sempre encantou o
leitor brasileiro e que teve em
Rubem Braga seu maior nome.
Luci Afonso é uma deliciosa descoberta que o leitor vai compartilhar
comigo nas próximas páginas, às quais se seguirão, aposto, uma tal saudade de
leitura que há de provocá-la para não demorar em nos brindar com seu segundo
livro.
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