Falar do quê?


Luci Afonso

Acordo na manhã fria em meio a esperanças e medos. A vontade é dormir mais, porém as palavras já me espiam atrás da porta. Vão chegando devagar, a princípio tímidas, logo atrevidas. Sobem na cama, arregaçam a cortina e fazem cócegas até eu me levantar. Me empurram em direção ao banheiro, separam os remédios na primeira gaveta do criado-mudo, trazem meu vestido de escrever.
Após o café, me arrastam para o computador. A tela branca as enlouquece. Algumas já escolhem seu lugar, mesmo sabendo que é provisório. As mais íntimas se sentam em meus ombros, esperando sua vez, e a maior parte se divide em grupos animados, certas de que serão usadas.
Todo dia lhes pergunto: vamos falar do quê? E elas respondem: ah, de qualquer coisa! Tenho pressa: as esperanças aumentam ao longo do dia, enquanto os medos diminuem, mas eles voltam à noite, trazendo suas amigas, as dores. Difícil escrever quando elas chegam.
Às 10 horas, fazemos um intervalo para outra xícara de café. Precisamos estar bem despertas. Elas se espalham ao sol ainda morno na janela, esperando minha volta. Não sei o que conversam quando não estou na sala, mas aposto que falam de mim. Quando retorno, vejo que muitas mudaram de lugar, achando que eu não perceberia. Escondem-se atrás das maiúsculas ou embaixo dos travessões. Algumas, deixo ficar – elas se conhecem melhor que eu. Outras, reposiciono e até substituo, sem dar ouvido a lamentações. As mais humildes nunca reclamam.
Antes do almoço, consultamos a pauta do dia:
1.                  O canto da primeira cigarra, às 18 horas e 20 minutos, acompanhada pelo passarinho da chuva. Inauguração oficial da primavera com o Concerto em Dor Menor para Pássaros da Chuva e Cigarras, de autoria desconhecida.
2.                  A sombra fugidia de um mendigo dobrando a esquina das Casas São Jorge e sumindo na multidão da Boa Vista, na pequena cidade mineira. A vontade de o agasalhar, mesmo não sendo inverno.
3.                  A chegada à Rodoviária Interestadual de Brasília, às 5 da madrugada, de uma senhora humilde e sua filha de 5 anos, que vem tratar a perna deficiente no Sarah. Está escuro e frio; elas não conhecem ninguém e não têm para onde ir. A mulher que desembarcou do mesmo ônibus pensa em levá-las para a casa na Asa Norte, mas desiste ao lembrar do dia cansativo que tem pela frente.
Palavras-chave: cigarra, primavera; mendigo, frio; criança, coragem.
É uma tarefa delicada escolher o assunto de hoje. Quantas palavras serão necessárias? Inútil consultar o dicionário: a esta hora ele está fechado. O ponto final já se apresenta e aguarda colocação. Decidimos falar um pouco sobre cada tema, começando pela coragem – antes que a noite chegue e nos faça desligar a tela branca do computador.



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