Querido Fred
Luci Afonso
Olhou bem a sua volta, para certificar-se
de que não era seguida. Apesar do sol forte, vestia moletom com capuz e óculos
escuros enormes, que comprara na Feira dos Importados. Viu-se refletida numa
vitrine e concluiu que estava mesmo irreconhecível. Deu duas voltas no prédio
antes de descer o lance de escadas para o subsolo mal iluminado.
Eram quatro horas da tarde. Ninguém à
vista. As poucas lojas pareciam vazias, inclusive a lojinha do canto, a que se
destinava. Tinha cronometrado toda a
operação, sem possibilidade de erro. Virou-se à esquerda e entrou. Uma jovem
punk veio atendê-la com um sorriso de fazer inveja:
— Pois não, senhora. Posso ajudá-la?
Nas outras tentativas, tinha chegado até
este ponto e recuado, com a desculpa de que se enganara de loja. Hoje, porém,
tomou coragem e respondeu:
— Sim, querida.
— Acho que sei o que a senhora deseja. Me
acompanhe, por favor.
Foi levada a outra sala, repleta do
produto que desejava.
— A senhora tem alguma preferência?
Olhou
as paredes em volta. Tanta variedade que era impossível escolher. Ela só queria
sair o mais rápido dali, antes que chegasse alguém.
— Posso dar uma sugestão? — perguntou a
vendedora, com uma naturalidade desconcertante.
— Sim, por favor.
Ela escolheu um objeto da vitrine e
explicou: — Este é o ideal para quem está começando. É anatômico e usa pilhas
AA, fáceis de trocar...
— Quanto? — ela sussurrou.
— Oitenta e quatro reais, incluídas as
pilhas. Garantia de um ano.
— Tem desconto no dinheiro?
— Cinco por cento. Sai por apenas 79,80.
— Você tem algum de até 60 reais? É o que
tenho na bolsa.
— Tem este, de 59,90 — ela mostrou o
produto —, mas sem pilhas. Requer operação manual.
— Vou levar.
— Com ou sem bolas?
— É o mesmo preço? — a vendedora balançou
afirmativamente a cabeça e acrescentou:
— É uma boa opção. Este modelo tem muita
saída.
— Embrulhe bem, por favor.
— É para presente?
— Embrulhe bem, por favor.
— É para presente?
— Não... sim.
— CPF na nota?
— Não precisa.
— Dotz?
— Não.
Saiu da loja com uma
sacola preta discreta, sem identificação. Ao entrar em casa, foi direto para o
quarto, escondeu a sacola numa gaveta secreta do guarda-roupa e a chave numa
gaveta secreta do criado-mudo.
Esperou todos dormirem para
desembrulhá-lo. Era imponente. Na sua base se lia “made in China”. Onde teriam os
chineses arranjado o molde?
O anterior, comprado pela
Internet, custara apenas 29,90. Tinha pilhas, mas era tão pequeno que o apelidara
de Barney. Um dia, esqueceu-o debaixo do travesseiro e a empregada o jogou no
lixo, pensando se tratar de uma embalagem vazia. Estava decidido: o novo se
chamaria Fred. Tirou o pijama, apagou a luz e se preparou para a estreia. Nesse
exato instante, a porta do quarto se abriu: esquecera-se de trancá-la. Felizmente,
não era seu filho. Era Hannah, a gatinha branca que sempre dormia com ela. Deixou
que se acomodasse e foi trancar a porta. Sempre esquecia o quanto Hannah era
curiosa. Quando voltou, a gata já se escondera no forro da cama e mordia Fred
com raiva. Indignada, expulsou-a do quarto, desta vez lembrando de trancar a
porta.
Partiu para a segunda
tentativa. Calçou as meias-ligas de renda preta, passou o batom vermelho paixão
e deitou-se na penumbra. As carícias apenas começavam quando ouviu um batido
leve na porta. Agora era seu filho, reclamando que a merda da Internet estava
fora do ar. Depois de uma eternidade ao telefone com a merda do suporte
técnico, descobriram que o problema era a merda de um fio mal conectado ao
modem. Resolvido o problema, abraçou o filho e desejou-lhe boa noite.
— Durma com Deus, meu filho.
— Tá.
Agora tinha que dar
certo. Deitou-se, relaxou e pensou no namorado, no sexo ardente que faziam, nas
fantasias que só ele sabia realizar. Mas ele estava a 500 quilômetros de
distância. Tinha de se contentar com Fred. Pegou-o debaixo do travesseiro e ia
começar a usá-lo quando se ouviu um estrondo e um gemido. Pôs o roupão e foi
verificar do que se tratava.
A mãe idosa caíra da cama
e gemia, segurando a perna direita. Era quase surda e tinha perdido metade da
visão devido a uma catarata que ela teimava em não operar. Queixava-se de uma
forte dor na perna e não conseguia se levantar. O SAMU foi chamado e constatou
a fratura no fêmur direito. Levada ao hospital, foi engessada e ficou em
observação durante horas, sendo liberada quando o dia já clareava.
Ela acomodou a mãe,
deu-lhe os remédios e voltou para a cama para dormir um pouco, pois começava às
8h no trabalho. Na confusão, esquecera-se de Fred. Lembrava-se vagamente de
tê-lo guardado, mas estava com muito sono para abrir as gavetas secretas.
Hannah dormia espichada na cama.
Dormiu umas duas horas,
arrumou-se e foi trabalhar. Passou o dia numa espécie de sonho, em que
apareciam o namorado, Fred, Hannah e a mãe engessada. Voltou mais cedo, cuidou
da mãe, do filho e da gata, e se trancou de novo no quarto.
Pegou a chave secreta no
criado-mudo e abriu a gaveta secreta do guarda-roupa. Fred não estava lá.
Vasculhou o quarto e só então prestou atenção na gata. Levantou-a e descobriu que
seu querido Fred estava em pedaços. Hannah acordou por um breve instante, mudou
de posição e continuou a dormir o sono justo dos gatos.
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