A banca exterminadora
Luci Afonso
Apoiei-me
bem no tampo da mesa, dei um grito e levantei-me, ignorando a dor dilacerante
nas coxas. Abaixo da cintura, tudo doía. Era preciso enorme esforço para
levantar da cadeira ou da cama. O ortopedista diagnosticara inflamação no
ciático. Isso porque, nos últimos três meses, eu passara horas incontáveis ao
computador, escrevendo meu Trabalho de Conclusão de Curso. Apesar da idade, era
a primeira vez que eu fazia o TCC. Quando mais jovem, eu começara a faculdade quatro
vezes sem terminá-la. Sempre a mesma história: eu passava no vestibular,
iniciava o semestre, ia desanimando, começava a faltar e acabava deixando o
curso.
Desta
vez, pretendia me formar. O fluxo curricular se invertera, porque eu havia
abandonado o Estágio Supervisionado II por medo dos alunos. Agora, ao TCC se
seguiriam dois semestres de estágio obrigatório, mas eu só conseguia pensar num
problema de cada vez. Terminada a Licenciatura, planejava fazer uma breve
pausa, e logo depois uma pós-graduação. Tinha inveja quando alguém me dizia:
“estou fazendo uma pós”.
Eu
escrevera 51 páginas, 15.397 palavras, 82.971 caracteres sem espaço, 98.205
caracteres com espaço, 401 parágrafos e 1.688 linhas. Consultei vinte livros,
17 artigos acadêmicos, 4 teses de mestrado, uma de doutorado, dicionários
diversos. Dediquei especial atenção ao aporte teórico. A orientadora estava
satisfeita com o resultado. Senti-me confiante.
Chegou
o dia da apresentação. Arrumei cabelo e unhas, vesti uma roupa social.
Contratei o serviço do UberBlack e convoquei meu filho a me acompanhar, depois
de convencê-lo a tomar banho e a trocar de roupa. Saímos com bastante
antecedência, porque a universidade era longe. Eu fazia o curso a distância. Esse
seria meu primeiro contato com os professores.
Encontrei
a orientadora bem antes do horário agendado, para fazermos os acertos finais. Ela
estava aflita porque o PowerPoint ficara muito extenso e ela precisara cortar
dezessete slides. Sem problema, eu disse. Meu filho se encarregaria da projeção.
A examinadora chegou um
pouco atrasada por causa do trânsito. Era a única na plateia, o que me deixou
nervosa: não havia mais ninguém para eu olhar. Aplicando os conhecimentos
adquiridos na Oficina de Retórica feita há uns dez anos, adotei o olhar de
paisagem, que não se fixa em nenhum ponto específico. Isso me ajudou a suportar
os longos quinze minutos da apresentação.
Terminada
a defesa da monografia, sentei-me para ouvir as considerações da mestra. O
trabalho estava muito bom, ela disse, exceto pelo aporte teórico: eu confundira
a análise de discurso de linha francesa com a análise de discurso de linha
inglesa. São teorias opostas.
Ela
havia lido as 51 páginas no fim de semana e fez questão de explicar cada anotação.
Minha confiança foi diminuindo aos poucos. Uma lágrima ameaçou despontar no
olho direito. Mantive-me firme enquanto pude, para não causar nenhum trauma ao
meu filho, mas desabei quando ela disse que eu havia apenas tangenciado o
aporte teórico. Levantei-me com um grito
de dor e pretendia sair correndo da sala, mas elas me abraçaram e me fizeram
sentar novamente, enquanto uma delas buscava um copo d’água.
— Não estressa, mãe — disse meu filho,
segurando meu ombro.
— Não fique assim, isso é comum — informou
a orientadora.
—
A linguagem acadêmica é muito
diferente da literária. Se eu fosse escrever uma crônica, também teria
dificuldade — completou a examinadora
À
medida que eu me acalmava, elas discutiam uma forma de me ajudar. Decidiram que
eu receberia a nota mínima, sob condição de refazer o trabalho em trinta dias,
e que conforme o resultado minha nota poderia aumentar. Aceitei.
Enquanto
aguardo novas instruções, faço fisioterapia motora para coluna lombar, coxas,
joelhos e mãos. Tudo continua doendo, mas estou tranquila: entre mim e o
diploma, apenas dois semestres de estágio com alunos da rede pública de ensino.
O que pode dar errado? Tenho certeza de que me formarei até os sessenta anos.
Depois, vou parar de estudar. Pensando bem, pós-graduação para quê?
Comentários
Postar um comentário