Bom dia, Deus


Luci Afonso

Não uso despertador. Às sete em ponto, minha gata Hannah abre a porta do quarto e pula na cama, querendo pescocinho — nome que dei ao carinho no pescoço, que a faz ronronar de prazer. Em troca, ela me lambe com sua linguinha áspera e morde meu dedão do pé, seu eu não estiver acordada. O pescocinho é repetido várias vezes ao dia, e é ela que determina a duração. Quando está satisfeita, levanta-se e vai cuidar da vida.
Durmo mais um pouco. Às sete e quarenta e cinco, Anacleide traz a bandeja com o café da manhã, junto com uma flor que ela roubou no caminho. Não, ela não é homoafetiva, é uma alma pura que se apaixonou por mim e me cerca de cuidados, como se tivesse adotado uma criança grande.   
Preparo-me para caminhar. Faz um pouco de frio, mas eu gosto assim. Me aconchego em mim mesma e dou três voltas na quadra. A cada dia aumento o trajeto, em busca de mais endorfinas.  Depois do banho morno, coloco o vestido longo que sempre uso em casa e os colares de sementes miúdas que eu mesma fiz, a cor combinando com a da roupa. Batom, perfume, e estou pronta para trabalhar.
Dirijo-me ao escritório, bem em frente ao quarto. Acendo o incenso, faço a oração do dia e ligo o computador. As palavras estão lá, frescas e inspiradas pelos sonhos da noite. Elas me esperam para mais um dia de conversas e negociações. Confabulamos em silêncio até sermos interrompidas pelo telefone.
Às dez e trinta, meu namorado liga. Estamos a nove horas de ônibus de distância, mas o encantamento continua. Em seguida, Anacleide traz a bandeja com a vitamina de frutas e o café coado na hora, junto com outra flor. Hannah quer mais um pescocinho. Descanso um pouco enquanto a acaricio.
Vou ao quarto do meu filho doente. Abro a porta e observo o gigante magro encolhido debaixo do edredom, como se ainda estivesse dentro de mim. O cabelo está grande e feio, a barba o faz parecer um homem de cem anos. Passa dias sem tomar banho e insiste em usar uma camiseta velha, cheia de buracos. Só nos abraçamos a meu pedido. Ele me dá beliscadinhas no braço, como jeito de fazer carinho. Sua tristeza, aliada à minha, é mais do que posso suportar. Fecho a porta devagar, remoendo-me de culpa.
Hoje fomos convidados para uma festa de aniversário.  Festas me doem. Meu corpo esqueceu como se dança, meu coração não se lembra  de como sentir alegria. Mas iremos, meu filho e eu, na esperança de algum milagre.
Retorno às palavras, remédio de uso contínuo e prolongado.  Anacleide traz mais um café, Hannah vem pedir outro pescocinho. O dia segue. É o que temos pra hoje, como diria o poeta sem nome.
                                                                                                         Maio/2016

Comentários no Facebook:


Eneida Soares Coaracy     Bom dia Luci! Mergulhei no seu dia. Que seu domingo siga manso e iluminado. Bj   15 de maio às 13:03

Maria Célia Morici Corrêa      Vc é muito forte, Luci! Parabéns! Beijo 15 de maio às 14:41

             Marcia Bandeira     Luci, que texto tão belo e tão triste e tão revelador da alma humana. Sua sensibilidade me emociona profundamente. Beijo nos corações seu e do Ramon🌸🌻🌸 15 de maio às 21:03 

Comentários

  1. Você me fez chorar. Quanta força e ternura em meio ao sofrimento! Crônica linda! Bjs

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