A vista de cima
Luci Afonso
Beatriz
e Cecília Valentina brincam embaixo de um jovem ipê amarelo. Uma delas sobe no pequeno
galho onde despontam os primeiros brotos, a menos de dois metros de altura.
— Como
é a vista aí de cima? — pergunta Beatriz, que
está no chão.
Cecília
Valentina observa em volta e responde, com enlevo:
— É linda, Beatriz!
Saio cedo para caminhar. Uso
chapéu bordado e levo câmera de bolso para registrar os acontecimentos diários — flores caídas, folhas ao vento, pessoas ao despertar.
É a melhor parte do dia, antes dos sintomas e flutuações dos remédios. A
médica recomendou olhar bem onde piso. Já levei dois tombos, típicos da fase em
que me encontro, mas não consigo fixar os olhos no chão — pelo menos, não enquanto velhinhos
encantadores e senhoras estrangeiras tristes cruzarem o meu caminho.
Tenho uma coisa com
velhinhos: compartilhamos a insistência em viver. Lembro o Sr. Rubens, o
velhinho torto que morava no outro prédio. Fofinho e cheiroso. O Sr.
Pernambuco, nobre guardador de carros e de poesia. Dona Flor, esvaindo-se
dignamente como a última chama.
Não conheço pessoalmente
os velhinhos atuais, por isso dei número a cada um. O Sr. 01 usa bengala, dá
passos miudíssimos e leva uma eternidade para chegar ao outro bloco. Tem
movimentos mínimos. Por que se dá ao trabalho de sair de casa? O Sr. 02 exibe
seu carrinho motorizado, dando voltas e voltas na quadra. Deve ser rico para
ter um carrinho desses. Há um assento de passageiro. Talvez eu lhe peça carona
qualquer dia. O Sr. 03 é acompanhado por uma morena forte que o leva pelo
braço. Eles conversam animadamente. A Sra. 04 também usa bengala e é cuidada
por uma jovem quieta e calada. Duas solidões que não se abraçam.
No meio do trajeto,
encontro a Sra. Estrangeira 01. É asiática. Anda sempre olhando para o chão e,
com certeza, não leva tombos. Não levanta os olhos nem mesmo quando cruza com
alguém. Usa um chapeuzinho bege, combinando com a roupa. Nenhum traço de cor,
nenhuma estampa. Eu me confundo com o amarelo dos ipês, o vermelho dos
flamboiãs e o azul-claro do céu. Às vezes, a paisagem se camufla em mim.
A cada passo, imagino um
mundo perfeito. O Sr. 02 convidaria o Sr. 01 para andar no carrinho motorizado;
o Sr. 03 caminharia de braços dados com a Sra. 04, conversando animadamente, as
cuidadoras rindo ao lado. A Sra. Estrangeira 01 se vestiria de estampado e sorriria
sem motivo. Eu perderia o medo de cair.
Cecília Valentina tem
razão: é linda a vista aqui de cima.
Janeiro
2016
Comentários no Facebook:
Francine Figueiredo Como suas crônicas me encantam! 23 de maio às 14:19
Comentários no Facebook:
Tarlei
Martins Lindeza
guardada em palavras, como sói acontecer pela arte dos grandes cronistas.
Gostei em especial deste " Às vezes, a paisagem se camufla em mim".
Abs!! 23 de maio às 10:40
Maria
Amélia Elói
Suave. Uma delícia. 23
de maio às 11:17
Francine Figueiredo Como suas crônicas me encantam! 23 de maio às 14:19
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