Monstrinho


Luci Afonso

Nossa rua tem um retardado que vive numa cadeira de rodas. O nome dele é Geraldo, mas longe dos adultos nós o chamamos de Monstrinho. Fui eu que inventei o apelido, porque ele se parece muito com um monstro que tem no livro da escola.

Geraldo é filho do Zedelino, dono do boteco na esquina com a avenida Getúlio Vargas. O lugar vive cheio, ora de pinguços jogando truco, ora de crianças encardidas comprando balinhas. Todo mundo diz que o Zedelino tem muito dinheiro guardado, mas ninguém tem certeza. Ele só usa roupas surradas e dirige uma Kombi caindo aos pedaços para transportar mercadorias. Eles moram nuns cômodos fedidos no segundo andar do boteco.

Monstrinho passa o dia na janela, olhando o movimento. Só sai para ir ao médico na Santa Casa. Dizem que ele vai viver pouco, por causa do retardamento. Também, pra que viver muito desse jeito? Melhor morrer logo. Igual à mãe dele, que morreu no parto.

Ele nos observa com atenção enquanto jogamos bola à tarde. Sou doido por futebol. Os meninos me chamam de perna de pau, mas sou muito bom no gol. Monstrinho torce por mim. Quando agarro uma bola, ele se mexe na cadeira e sacode os braços deformados. É muito engraçado.
  
No intervalo da pelada, entramos correndo no boteco atrás das balas que o Zedelino nos dá para brincarmos com o filho. De tão velhas, estão grudadas no papel, mas chupamos assim mesmo. Subimos as escadas escuras e fingimos rir com o retardado, quando na verdade estamos é rindo dele. Quando nos vê, ele balança os braços desengonçados, solta grunhidos e expele a baba viscosa. É nojento. Ficamos poucos minutos por causa do fedor de mofo e urina. Na saída, digo ao seu ouvido: tchau, Monstrinho!, o que o faz se agitar ainda mais, dando a impressão de alegria.

Eu e Monstrinho fazemos aniversário quase juntos: ele no dia 9, eu no dia 10. Este ano o Zedelino convidou todas as crianças da rua para a festa do filho. Vestiu-o de camisa nova, sentou-o perto da janela e desceu para esperar os convidados. Só apareceram os bêbados de costume. Ele os reuniu, subiram as escadas e cantaram parabéns. Assistimos a tudo escondidos na varanda de casa. Quase morremos de rir.

Ainda não contei que meu pai tem um comércio grande no Mercado Municipal, descendo a Igreja Matriz. Dá tanto lucro que ele precisa de três empregados para atender os clientes. Nossa casa é a mais bonita da rua. Tem dois andares, varanda em cima. Meu quarto é enorme, cheio de brinquedos.

Na manhã do meu aniversário, a campainha tocou logo cedo. Era o Zedelino, com uma bola embrulhada num papel todo amassado. Ele me deu os parabéns, me entregou o presente e ficou esperando. Entendi logo: ele queria que eu convidasse o Monstrinho para minha festa, mas fiquei calado até que ele desistiu e foi embora. Convidar o retardado para quê? Ele nem deve saber o que é uma festa.

Depois dos parabéns, meu pai me abraçou com força e se trancou na biblioteca. Estávamos estourando balões na varanda quando ouvimos o tiro. Os homens arrombaram a porta e correram para o hospital, mas ele já estava morto. Ouvi cochichos sobre dívidas de jogo, falência, penhora e outras palavras complicadas. Minha mãe disse que precisaríamos nos mudar.

Quando chegamos do enterro, saí andando sem rumo. Era quase noite, a rua deserta. Sentia ódio de todo mundo. Avistei o retardado na luz fraca da janela. Entrei no boteco. O Zedelino não estava no balcão; os fregueses tomavam a dose diária de pinga. Subi as escadas sem ruído. Monstrinho cochilava e despertou quando me viu. Eu disse oi, Monstrinho, e dei-lhe um beliscão que o fez ganir de dor. Continuei beliscando os braços atrofiados, joguei-o no chão e chutei sua cara até sair sangue. Ele urrava como um animal ferido. Atraído pelo barulho, o pai surgiu na escada, agarrou meu braço até quase quebrar e me mandou embora. Não pude ver seus olhos no escuro.

Fiquei no quarto vários dias, com medo da polícia, mas o Zedelino não contou a ninguém o que havia acontecido. Uma noite, a campainha tocou. Era ele. Conversou um tempão com a minha mãe e saiu. Ela subiu a escada, sem fôlego, para me dar a notícia: o Zedelino resgataria todas as nossas dívidas, e nós lhe pagaríamos a juro baixo e a longo prazo. Podíamos permanecer na casa. Ele só fez um pedido, que ela atendeu prontamente: dali em diante, eu brincaria toda tarde com o filho dele, em vez de jogar bola com os outros meninos.

Antes de atravessar a rua, vejo o Monstrinho me esperando na janela. Com repugnância, subo até o quarto espremido e fétido. Agora tem uma empregadinha que nunca nos deixa sozinhos. Ele me olha em silêncio, o corpo disforme jogado na cadeira de rodas, a cara cheia de hematomas. Assistimos ao futebol dos meus amigos a tarde inteira. O Zedelino só me deixa ir quando está escurecendo. Tudo culpa do retardado. No primeiro descuido da empregadinha, vou empurrar a cadeira escada abaixo, para que ele quebre todos os ossos e morra. Só assim poderei jogar bola de novo.

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Kelly Vyanna Sem palavras diante de um texto tão duro, mas também tão repugnantemente humano. Parabéns, querida Luci Afonso. Autora acadêmica da ASLAS.


Maria Montillarez Parabéns!  Um texto incrível, mas cheio da crua realidade.
12 de janeiro às 12:27  
  

                                               

Comentários

  1. Nossa, que soco no estômago! A vida como ela se mostra, crua, dura, nojenta, muitas vezes. Do jeito que eu entendo que deve ser mostrada. Adorei! Não é à toa que o texto foi premiado. Você escreve demais! Sempre achei. Beijos

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