Viagem ao Sul de Mim
Luci Afonso
Na sexta-feira à tarde, após
longa viagem de ônibus, com diversas paradas, embarques e desembarques, chego a
Três Corações, pequena cidade no Sul de Minas. Venho cumprir a promessa de
visitar tia Maria Afonsina, que não vejo há quarenta anos. Estou exausta e, ao
mesmo tempo, emocionada em rever a irmã do meu falecido pai.
A família me espera no portão.
A voz delicada eu já
conhecia. Agora estou frente a frente com a figura miúda de olhos claros e
cabelos brancos. O tempo passou para todos nós. Choro muito em nosso reencontro.
Ela tem o olho seco, conforme me explica mais tarde: chora por dentro, sofre
mais.
— Temos uma surpresa — ela
diz, conduzindo-me à suíte que ocuparei nos dias seguintes.
Sobre a antiga cômoda há uma
rosa e uma fotografia em preto e branco. O ano é 1959. O cenário é um famoso
restaurante da época. Há várias pessoas na mesa, mas me concentro no jovem
casal à direita. Ele veste terno escuro e ela, vestido decotado. São meus futuros
pais antes de se casar, antes sequer de planejar minha existência. Estão
felizes.
Tia Afonsina preparou um
lanche à moda mineira: a mesa está repleta de quitandas. Tio Rubens passa o
café, enquanto converso com o primo Rubinho. O primo Carlos Alberto está
cuidando da companheira doente e virá mais tarde. Também estou enferma de corpo
e alma, mas não toco no assunto. O corpo não tem cura; a alma talvez encontre
algum alívio entre os parentes que acabei de conhecer. Nosso tom de voz é baixo
e tranquilo, como se nos conhecêssemos a vida inteira. Falamos do que foi e do
que poderia ter sido. Avaliamos o presente, concluindo, como naquele filme
italiano, que estamos todos bem. Indagamos sobre o futuro, que, a partir desta
visita, parece cheio de possibilidades — uma segunda infância.
Minha tia tem a saúde
frágil. Perdeu muito peso, sente dores nas juntas. Seus braços são de
passarinho. Não está enxergando direito, mas a audição é boa. Eleita a moça
mais bonita de Araxá, onde morávamos, ainda conserva traços da antiga beleza
nos olhos verdes e na figura esbelta que desliza pela casa. Usa saias e
vestidos de cores claras. Não dispensa o ruge nem o batom, mesmo que não vá sair.
Passamos imediatamente a
olhar as fotografias de família que ela guarda numa caixa. Seleciono várias
para copiar. Elas mostram uma mulher deslumbrante, corpo sinuoso, olhos
tentadores, cabelo escuro deslizando pelos ombros. Muitas são do casamento
civil e religioso: a noiva se contempla ao espelho; desce do carro à porta da
igreja; inspeciona, com o noivo, os presentes espalhados na cama.
Meus pais não têm fotos
do casamento. Ninguém sabe por quê. Tia Afonsina não se lembra, nem o marido. Continua
a dúvida: os noivos não quiseram ou não puderam registrar o momento? Aonde
terei que ir para encontrar essa resposta? O acaso, como diz o poeta, permitirá
que eu a encontre?
Mostro a minha tia o
vestido branco de renda que comprei num shopping
em Uberlândia. Não sei quando vou usá-lo, pois não planejo ir a festas de fim
de ano.
— Você está querendo
casar — ela comenta.
Faz muito calor. À
tardezinha, o vento começa a soprar, enquanto os sinos da igreja anunciam a
missa das sete. Tia Afonsina se acomoda no banco de madeira forrado com
almofadas e estica as pernas para aliviar o inchaço. Depois, empurra a cortina
e aproxima o rosto da janela. Ela se sente sozinha durante a semana, quando o marido
e o filho estão fora. Tio Rubens lava a louça antes de ligar a TV. Ele só
assiste ao telejornal quando as notícias são boas. Eles me contam que os amigos
da sua idade estão morrendo, e isso lhes dá medo.
No sábado, vamos almoçar
e passear pela cidade. No domingo, primo Rubinho toca violão, enquanto a mãe
canta marchinhas de carnaval. Eu me arrisco a acompanhá-la. O pai não deixa
faltar café com pão de queijo. O primo Carlos Alberto serve água fresca da mina
e, às vezes, se fecha na varanda para fumar. A companheira tem câncer. Eu te amo, ele repete ao telefone, na
esperança de curá-la.
Na última noite, adiamos
ao máximo a hora de dormir. São tantas perguntas a fazer, tantos vazios a preencher
no passado vivido a distância, mas compartilhado pelo afeto. Já sinto saudades
dessa família que também é minha e que só agora encontrei no extremo sul de
mim.
De quantos corações se
faz uma vida? De quantas lembranças se faz um passado? De quantos perdões se
faz uma alegria?
Minha tia e eu nos
despedimos com um longo abraço. Na janela do ônibus, aceno ao primo Rubinho. Na
bagagem, a fotografia em preto e branco. Na alma, a certeza de que meus pais um
dia foram felizes e de que finalmente tenho posse legítima dessa felicidade.
Comentários no Facebook
Luciana
Oliveira Fiquei emocionada
20 de outubro às 11:48
Francisco
Miranda Belo texto, Luci. Fico orgulhoso de você!
20 de outubro às 13:59
Tarlei
Martins Viajando na leitura, me vi desembarcando numa terceira margem de mim.
Texto lindo, como tudo que você assina. Abs, Tarlei
20 de outubro às 14:07
Sandra Daher Oi, Luci Afonso, você me fez chorar
com a beleza dessa intimidade cotidiana, comum aos interioranos. E a ilustração
está perfeita. Parabéns, obrigada.
20 de
outubro às 18:09
Cinthia Kriemler Você me emocionou duplamente, Luci
Afonso. Pela crônica linda e pelas lembranças do Sul de Minas, onde passava as
férias na minha infância e adolescência, pertinho de Três Corações (ora em
Varginha, terra de minhas primas, ora em Caxambu — mamãe era de Baependi e
tenho parentes em Caxambu). Você, como se diz no interior, "matou a
pau"! Parabéns!
20 de
outubro às 18:19
Esther Lima Souza Luci que espetáculo de crônica
familiar você sempre brilhante eu vi todas as pessoas e cenas relatadas.
20 de
outubro às 23:08
Joyce Cavalccante Que texto emocionante. Lindo. Deslocou meu coração. Obrigada
querida Luci. Agradeço a Rebra tê-la conhecido. Beija da joyce
21 de
outubro às 07:28
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