Profissão Escritora
Luci Afonso
Estou preenchendo o
formulário de check-in no Rio Othon
Palace.
— Algum problema, senhora? —
pergunta o recepcionista, ao notar o meu olhar perdido nas ondas do outro lado
da avenida.
— Não, tudo bem — disfarço, o
sorriso cansado.
Volto a atenção ao questionário.
Falta responder ao item “Profissão”, que tem sido causa de angústia
desde que me aposentei.
Funcionária pública? Fui
por trinta anos, não sou mais.
Taquígrafa? Ninguém sabe
o que é.
Analista Legislativo?
Idem.
Aposentada? Não é
profissão, é estado de graça.
Revisora? Cansei-me de
consultar gramáticas e dicionários para corrigir erros alheios. Bastam os meus.
Estudante? Soa ridículo na minha
idade. Digitadora? Secretária? Tradutora? Professora?
Começo a tremer, minha visão se
turva, mas tomo coragem ao responder: escritora.
Serei castigada pela minha audácia? Pela minha pretensão? Escritor
tem um quê de sagrado, uma aura de mistério, um toque de glamour. É um ser não
identificado. Bicho raro.
Assino o formulário e o devolvo
ao recepcionista, que confere as informações.
— Ah, a senhora é escritora? —
ele comenta em tom levemente irônico.
— Sim — respondo com firmeza.
— Tem carteirinha?
— De quê?
— De escritor.
— Para quê?
— Curiosidade, nunca vi uma.
— Não, não tenho.
— A senhora é famosa?
— Ainda não.
— Hum. Escreve livros?
— Claro.
— De que tipo? — ele insiste.
— Do tipo escrito.
— Ah! — ele desiste e me entrega
a chave.
Abro as cortinas da suíte
para ver o mar de Copacabana. O sol invade o quarto. A ducha é deliciosa. Fecho
as cortinas e me deito para descansar um pouco antes do evento em que receberei
um prêmio de excelência literária. Logo adormeço ao som do mar.
Estou numa sala de aula para fazer o Teste do
Escritor, necessário à obtenção da Carteira do Escritor. Preciso responder 50%
das questões para ser aprovada. Todas são subjetivas. Não há certo nem errado.
Teste
do Escritor
a)
Você
nasceu da palavra e vice-versa? Sim.
b)
Comunica-se
com o mundo por escrito, na falta da voz? Sim.
c)
A
palavra foi seu brinquedo preferido na infância? Sim.
d)
É
sua melhor amiga? Sim.
e)
Precisam
uma da outra? Sim.
f)
Já
brigaram alguma vez? Sim, mas logo fazemos as pazes.
g)
O
que você faz quando uma nova palavra bate à porta? Marque mais de uma opção, se
necessário.
I. (X) Aceita sem hesitar o pedido de
amizade.
II. (X) Pede que ela se junte às outras e
aguarde sua vez.
III. (X) Consulta os antecedentes dela no Houaiss.
h)
Como
você lida com uma palavra tímida? Marque mais de uma opção, se necessário.
I. ( ) Você a deixa quieta no canto da
memória.
II. (X) Você a convida para um chá, antes de
lhe fazer um convite.
III. ( ) Você a força a entrar no texto.
i) O que veio primeiro, o ovo ou a palavra?...
Toca o despertador. Carteirinha de escritor é o livro, eu
penso enquanto desço no elevador. Ao sair para a homenagem, dou um livro
autografado ao recepcionista do hotel, não sem antes fazer um rápido teste de interpretação.
Ele passa no teste. Isso me tranquiliza: um escritor não pode desperdiçar
palavras.
O vaivém das ondas me saúda: bo-a
noi-te es-cri-to-ra... Entro no táxi e vou receber meu prêmio.
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