Basófoba, eu?


Luci Afonso
Ele se senta ao meu lado na cama. A careca reluz em contraste à roupa preta. As olheiras profundas realçam os olhos escuros. A boca é pálida, quase transparente.
— Quem é o senhor? — pergunto.
— Sou o encarregado do seu caso no Departamento de Tombos e Quedas. Vim fazer o relatório diário.
— Mas fiz o pedido há quatro meses...
— O número de funcionários caiu muito — logo percebo sua pretensão a humorista.
Ele pega a prancheta:
— Sempre é tempo, não é mesmo? Vejamos... Hoje é 31 de outubro... Dia das Bruxas. Alguma ocorrência?
— Levei um tombo hoje de manhã.
— Tombo ou queda?
— Qual a diferença?
— Tombo é barulhento, espalhafatoso; queda é silenciosa, quase imperceptível.
— É tombo mesmo.
— Foi grave?
— Não, apenas ralei joelhos e cotovelos.
— Nível 1: escoriações leves localizadas.
— É, mas tem um detalhe.
— Qual?
— Eu caí na faixa privativa dos ônibus e quase fui atropelada.
— Então, nível 5: provável risco de vida. A senhora teve ajuda?
—Não, tive um sermão.
— De quem? — ele pergunta.
— De um brigadista à paisana.
— O que ele disse?
— Ele me recomendou que prestasse mais atenção. 
— O que a senhora respondeu?
— Eu o mandei à merda.
— É preciso tratar bem os brigadistas. Nunca se sabe quando vamos precisar deles. Retomando: foi seu primeiro tombo?
— Não. Da primeira vez, bati o rosto.
— Este foi mais leve, então.
— Exceto pelo detalhe de que poderia ter morrido.
— Felizmente, não morreu.
Fico em silêncio.
— A senhora vai escrever sobre isso?
— Como o senhor sabe que eu escrevo?
— Li toda a sua obra. Devo dizer que me diverti bastante.
— Não achei graça nesse episódio.
— Ainda não... — ele emenda, com familiaridade.
— É, ainda não...
Começo a imaginar que graça haveria em ter caído no asfalto e quase ter sido atropelada por um ônibus. Só se eu mudasse alguns detalhes: uma bicicleta aqui, uma moto ali, personagens...
— Quando foi mesmo o primeiro tombo?
— Há quatro meses.
— A frequência está boa.
Ele preenche algumas questões “sim” ou “não”.
— Qual a última coisa de que a senhora se lembra antes de cair?
— Lembro-me de estar em pé.
— Hum-hum. Alguma outra observação?
— Senti muita angústia.
— É normal. A senhora se considera basófoba?
— ...?
— Tem medo de cair?
— Não.
— Ainda não... — ele anota no formulário.
 Chegamos à última página.
— A senhora já experimentou algum delírio?
— Este é o primeiro.
— Hum-hum. Algo mais a declarar?
— Estou com muito sono.
 Ele me estende a prancheta:
— Por favor, rubrique todas as páginas no canto inferior direito.
Ele espera cortesmente, confere a papelada e some pela janela:
— Durma bem. Volto amanhã, se Deus quiser.
Acordo um pouco confusa da soneca da tarde. Lembro vagamente de ter sonhado com um homem sentado na cama. A fantasia de Halloween está pronta no cabide: uma releitura sexy de bruxa, com short curto, meia-calça preta e saltos altíssimos. Meus joelhos e cotovelos ainda doem. Só espero não levar outro tombo.

Comentários no Facebook:

Raquel Melo Adorei!
11 de janeiro às 21:00

Eneida Soares Coaracy Delicioso delírio onírico!
11 de janeiro às 22:05

Sandra Daher Muito bom Luci Afonso, ri muito no seu conto! Parabéns pelo aniversário,  tenha um grande ano!
11 de janeiro às 23:33

Cinthia Kriemler Que delícia! Só você para criar um ambiente desses!
12 de janeiro às 00:53 

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