Mão na cabeça

    

 

 

Luci Afonso

 

 — Mão na cabeça! — gritou a Sargento Ivone.

 — Deitado no chão! — mandou o Soldado Bocca.

 O ladrão ficou confuso. Os policiais repetiram as ordens. Na dúvida, ele se deitou no chão e pôs as mãos na cabeça, sendo logo algemado e conduzido à viatura.

  O Cabo Elias aguardava ansiosamente a chegada do último camburão para saber se poderia dormir um pouco. Ouviu a primeira porta do veículo se abrindo; ouviu a segunda (o coração sempre disparava nessa hora); ouviu a terceira, o que significava que algum infeliz fora preso. Sentiu vontade de chorar: ficaria até de manhã sem dormir, lavrando a ocorrência nos mínimos detalhes.

— Culpa sua.  Culpa sua! — ele reclamou ao colega de plantão, que não lhe dava sossego. No dia seguinte, andaria pela casa como um autômato, sem que o sono viesse. Isso ocorria pelo menos três vezes na semana, o que vinha lhe causando uma estafa permanente.

A Sargento Ivone também estava com dificuldades. Na manhã seguinte, foi chamada à sala do chefe.

 — Bom dia, Doutor.

 — Bom dia. Acomode-se, Sargento.

 O delegado tinha a ingrata missão de transmitir uma queixa à subordinada. Começou elogiando a dedicação, a competência, a pontualidade, a assiduidade. Quando ia entrar no assunto, foi interrompido com firmeza:

 — Um momento, Doutor — Ivone percebeu que a conversa era confidencial, pelo tom de voz do chefe. Levantou-se, trancou a porta do gabinete e aproximou sua cadeira da mesa.

— Agora o senhor não precisa cochichar.

 — Os colegas estão reclamando que você não está ouvindo bem e que isso está prejudicando seu desempenho — ele disse, sem rodeios.

 — Desempeno? Alguma quadrilha de desmonte? Pode deixar comigo...

 — Não, Ivone. Estamos achando que você está com a audição comprometida. Além de não ouvir direito, você tem gritado com todo mundo.

 — O senhor pode falar mais alto?

 — Você tem algum caso de surdez na família? — ele perguntou, elevando a voz.

 — Só minha avó, minha mãe, meu tio e meu irmão. Por quê?

 — Acho que você também está com problemas. Tire folga amanhã e vá fazer os exames.

 — Alguém reclamou de mim, doutor? Foi o Bocca, não foi? Ele nunca me aceitou como superior...

 — Dispensada, Sargento.

 Ivone retornou a seu posto. Ficou calada o restante do dia e inventou uma dor de dente para não almoçar com Bocca no self-service ao lado, como sempre faziam.

 A fonoaudióloga constatou severa perda de audição nos dois ouvidos e prescreveu um aparelho para surdez. Era caríssimo. O delegado estava doido se pensava que Ivone ia gastar uma fortuna daquelas.

Conversando com a mãe, também quase surda, as duas tiveram uma ideia brilhante: para economizar, uma usaria o aparelho no ouvido direito e a outra, no esquerdo. Fizeram o teste; funcionou. Elas só tinham que inclinar levemente a cabeça de acordo com a posição do interlocutor.

No plantão seguinte, a Sargento Ivone deu de cara com o delegado e posicionou o ouvido direito em sua direção.

— Então, Sargento, fez os exames?

— Positivo, Doutor.

— Vejo que está usando aparelho. Está ouvindo melhor?

— Alto e claro, Doutor.

 — Muito bem, Sargento. Dispensada.

Um problema a menos, pensou o delegado, mas havia outros a resolver. Mandou chamar o Cabo Elias. Era uma questão delicada. O rapaz franzino, de olhos arregalados, bateu de leve à porta.

— Boa noite, Doutor.

— Boa noite, Cabo. Sente-se, por favor. Precisamos conversar.

— Algum problema, Doutor?

— Não, quer dizer, eu é que lhe pergunto: algum problema?

— Não, Doutor, tudo em ordem. Por quê?

— Não leve a mal, mas os colegas têm achado seu comportamento estranho. Você anda muito irritado, sem concentração para fazer as ocorrências e...

— Pode falar, Doutor.

— Bem, eles dizem que você anda falando sozinho, como se estivesse brigando com alguém.

— É esse sujeito que vive me atormentando — disse o Cabo Elias, apontando a cadeira ao lado.

— Hummm... — o delegado olhou a cadeira. — Como é o nome dele?

— Ele não diz, Doutor, só para me irritar.

— Tire folga amanhã e vá conversar com nossa psicóloga.

— Ele também, Doutor?

—Sim, vão os dois. Dispensado, Cabo.

Nervosíssimo, o Cabo Elias saiu do gabinete resmungando: — Culpa sua.  Culpa sua!

O delegado respirou fundo e pensou, mais uma vez, em como era difícil a sua profissão. Lidava com toda sorte de distúrbios que mais cedo ou mais tarde acometiam os policiais, mas conseguia solucionar a maioria. Para relaxar, trancou a porta, fechou as persianas e abriu o armário, de onde saíram as gêmeas coreanas com quem fazia sexo alucinado em noites de plantão.

 

 

Comentários

  1. De onde você tira essas ideias? Morri de rir com a imagem dessa delegacia na cabeça. Muito bom esse texto!

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  2. Que imaginação, Luci!
    Adorei.
    Beijos e parabéns.
    Maria Célia

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