Sobre mãos, palavras e ipês
Estou imersa em
palavras. Além de estar revisando o segundo livro de uma amiga, que será
lançado no próximo mês, estou reeditando meu primeiro livro, que deverá sair em
setembro. Ambos estão recheados de histórias de infância, maturidade e velhice.
Ambos falam da literatura como necessidade de sobrevivência da alma.
Ando às voltas com
epígrafes, padronizações e paralelismos. Minha obra foi reinterpretada por dois
jovens designers em novo projeto
gráfico e novas ilustrações. Minha amiga tem dois assessores talentosos. Sensibilidades
e experiências de jovens e maduros conversam no meu pequeno escritório. Afetos
e vivências se aconchegam nas frias manhãs de julho, enquanto as sinfonias
literárias vão sendo compostas a várias mãos.
As histórias invadem
meus sonhos. Uma menina atravessa o rio de canoa em direção ao mar, confiante
na mão materna, que segura a sua: são personagens da amiga. Para recuperar a
vontade de viver, uma mulher mergulha na noite com o jovem sobrinho em busca de
um diamante puríssimo: são minhas personagens. Mulheres com flores no cabelo
ensinam as travessias da vida; homens de cabelo branquíssimo mostram as trilhas
úmidas do amor — são histórias compartilhadas.
Porém, enquanto a alma
festeja as palavras, o corpo se ressente e grita. A antiga dor na coluna
reaparece, mobilizando minha atenção e impedindo-me de continuar. Preciso
cuidar dela para voltar ao trabalho.
Já tentei diversos
tratamentos sem êxito. Hoje, sexta-feira, agendei numa clínica do Lago Sul uma
sessão de body talk, terapia alternativa
especialmente recomendada para dores crônicas. Dizem que pelo toque, pela
intuição e pela palavra, a terapeuta conversa com a sabedoria inata do corpo
para saber o que o atormenta e, assim, o liberta de dores aprisionadas.
Assim como a menina da
história atravessa o rio, faço a travessia do Lago, confiante nas mãos de um
ser que ainda nem conheço, mas que, acredito, me devolverá às palavras que me
esperam.
Uma linda jovem me aguarda
à porta do consultório (saída de que história?). Jovem no corpo, antiga na
alma: nos reconhecemos de imediato. O ambiente é decorado com um bom gosto
simples e acolhedor. Deito-me na maca, enquanto ela se senta ao meu lado. Pega
minha mão e começa a falar com meu corpo. Por meio da visualização, ele nos conta
do futuro que não consegue enxergar, da tristeza que não deixa partir porque se
acostumou a ela, do esmagamento que sofreu no ventre e que deixou, na base da
coluna, duas sementes vermelhas cruas. Através da mentalização, mostramos ao corpo
que estará vivo e saudável daqui a trinta anos; eliminamos a tristeza acumulada
nos pulmões, deixando a parte que ainda não quer sair; e removemos as sementes
apodrecidas que sobrecarregam a coluna. O alívio é imediato.
No caminho de volta,
observo o contraste do gramado cinzento, denunciando a chegada da seca, com o ipê-rosa,
explodindo em cor e beleza por toda a cidade. Para minha amiga escritora, os
ipês são uma bênção de Brasília. Nos meus escritos, eles são também testemunhas
dignas e silenciosas dos acontecimentos. Neste final de tarde, o ipê narra
outras bênçãos: as palavras e as mãos que as escrevem. As mãos que escrevem e as
que curam. As mãos que curam palavras. As palavras que curam palavras.
O corpo apaziguado
assiste à primeira floração do ipê-rosa no céu avermelhado de julho. A alma
acesa renasce no gramado seco.
O livro da amiga está
pronto para ser lançado ao mundo. O meu, quase.
Tem início uma nova
história.
(Crônica selecionada entre as quinze finalistas do Prêmio SESC Rubem Braga de Crônicas 2013.)
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Comentários no Facebook:
Olivia Maria Maia Maia Linda crônica, Luci Afonso. Me senti
privilegiada em ser "a amiga" da crônica... A menina que segura a mão
da Mãe. Adoro nossa parceria... bjus e mais uma vez meus parabéns por ter
ficado entre os 15 melhores. Você pra mim é sempre a melhor.
9 de junho
de 2014 às 12:56
Eneida Soares Coaracy Amei a sua crônica, Luci. Que linda
ponte vc traça ligando a dor, à palavra e aos ipês em flor. Parabéns pela
colocação entre as 15 melhores. Merecido!
9 de junho
de 2014 às 19:39
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