Sobre mãos, palavras e ipês


Luci Afonso

 

Estou imersa em palavras. Além de estar revisando o segundo livro de uma amiga, que será lançado no próximo mês, estou reeditando meu primeiro livro, que deverá sair em setembro. Ambos estão recheados de histórias de infância, maturidade e velhice. Ambos falam da literatura como necessidade de sobrevivência da alma.

Ando às voltas com epígrafes, padronizações e paralelismos. Minha obra foi reinterpretada por dois jovens designers em novo projeto gráfico e novas ilustrações. Minha amiga tem dois assessores talentosos. Sensibilidades e experiências de jovens e maduros conversam no meu pequeno escritório. Afetos e vivências se aconchegam nas frias manhãs de julho, enquanto as sinfonias literárias vão sendo compostas a várias mãos.

As histórias invadem meus sonhos. Uma menina atravessa o rio de canoa em direção ao mar, confiante na mão materna, que segura a sua: são personagens da amiga. Para recuperar a vontade de viver, uma mulher mergulha na noite com o jovem sobrinho em busca de um diamante puríssimo: são minhas personagens. Mulheres com flores no cabelo ensinam as travessias da vida; homens de cabelo branquíssimo mostram as trilhas úmidas do amor — são histórias compartilhadas.

Porém, enquanto a alma festeja as palavras, o corpo se ressente e grita. A antiga dor na coluna reaparece, mobilizando minha atenção e impedindo-me de continuar. Preciso cuidar dela para voltar ao trabalho.

Já tentei diversos tratamentos sem êxito. Hoje, sexta-feira, agendei numa clínica do Lago Sul uma sessão de body talk, terapia alternativa especialmente recomendada para dores crônicas. Dizem que pelo toque, pela intuição e pela palavra, a terapeuta conversa com a sabedoria inata do corpo para saber o que o atormenta e, assim, o liberta de dores aprisionadas.

Assim como a menina da história atravessa o rio, faço a travessia do Lago, confiante nas mãos de um ser que ainda nem conheço, mas que, acredito, me devolverá às palavras que me esperam.

Uma linda jovem me aguarda à porta do consultório (saída de que história?). Jovem no corpo, antiga na alma: nos reconhecemos de imediato. O ambiente é decorado com um bom gosto simples e acolhedor. Deito-me na maca, enquanto ela se senta ao meu lado. Pega minha mão e começa a falar com meu corpo. Por meio da visualização, ele nos conta do futuro que não consegue enxergar, da tristeza que não deixa partir porque se acostumou a ela, do esmagamento que sofreu no ventre e que deixou, na base da coluna, duas sementes vermelhas cruas. Através da mentalização, mostramos ao corpo que estará vivo e saudável daqui a trinta anos; eliminamos a tristeza acumulada nos pulmões, deixando a parte que ainda não quer sair; e removemos as sementes apodrecidas que sobrecarregam a coluna. O alívio é imediato.  

No caminho de volta, observo o contraste do gramado cinzento, denunciando a chegada da seca, com o ipê-rosa, explodindo em cor e beleza por toda a cidade. Para minha amiga escritora, os ipês são uma bênção de Brasília. Nos meus escritos, eles são também testemunhas dignas e silenciosas dos acontecimentos. Neste final de tarde, o ipê narra outras bênçãos: as palavras e as mãos que as escrevem. As mãos que escrevem e as que curam. As mãos que curam palavras. As palavras que curam palavras.  

O corpo apaziguado assiste à primeira floração do ipê-rosa no céu avermelhado de julho. A alma acesa renasce no gramado seco.

O livro da amiga está pronto para ser lançado ao mundo. O meu, quase.

Tem início uma nova história.
 
(Crônica selecionada entre as quinze finalistas do Prêmio SESC Rubem Braga de Crônicas 2013.)
 
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Olivia Maria Maia Maia Linda crônica, Luci Afonso. Me senti privilegiada em ser "a amiga" da crônica... A menina que segura a mão da Mãe. Adoro nossa parceria... bjus e mais uma vez meus parabéns por ter ficado entre os 15 melhores. Você pra mim é sempre a melhor.
9 de junho de 2014 às 12:56

Eneida Soares Coaracy Amei a sua crônica, Luci. Que linda ponte vc traça ligando a dor, à palavra e aos ipês em flor. Parabéns pela colocação entre as 15 melhores. Merecido!
9 de junho de 2014 às 19:39

 Maria Teresa Valença Luci, querida, adorei sua crônica! Bjs!
10 de junho de 2014 às 07:51

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