O gato sou eu
Fernando Sabino
— Aí então, eu sonhei que tinha
acordado. Mas continuei dormindo.
— Continuou dormindo.
— Continuei dormindo e sonhando. Sonhei
que estava acordado na cama, e ao lado, sentado na cadeira, tinha um gato me
olhando.
— Que espécie de gato?
— Não sei. Um gato. Não entendo de
gatos. Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos
parados de gato.
— A que você associa essa imagem?
— Não era uma imagem: era um gato.
— Estou dizendo a imagem do seu sonho:
essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção
do seu subconsciente. A que você associa ela?
— Associo a um gato.
— Eu sei: aparentemente se trata de um
gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que
lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar
o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí
nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na
cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.
— Essa não, doutor. A ser alguém, neste
caso o gato sou eu.
— Você está enganado. E o mais curioso é
que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se
sonha não passa de uma projeção do eu.
— Uma projeção do senhor?
— Não: uma projeção do eu. O eu, no
caso, é você.
— Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está
querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e
estamos conversados.
— Eu sei: eu sou eu, você é você. Nem eu
iria pôr em dúvida uma coisa dessas, mais do que evidente. Não é isso que eu
estou dizendo. Quando falo no eu, não estou falando em mim, por favor, entenda.
— Em quem o senhor está falando?
— Estou falando na individualidade do
ser, que se projeta em símbolos oníricos, dos quais o gato do seu sonho é um
perfeito exemplo. E o papel que você atribui ao gato, de fiscalizá-lo o tempo
todo, sem tirar os olhos de você, é o mesmo que atribui a mim. Por isso é que
eu digo que o gato sou eu.
— Absolutamente. O senhor vai me
desculpar, doutor, mas o gato sou eu, e disto não abro mão.
— Vamos analisar essa sua resistência em
admitir que eu seja o gato.
— Então vamos começar pela sua
insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou
seu?
— Seu. Quanto a isto, não há a menor
dúvida.
— Pois então? Sendo assim, não há também
a menor dúvida de que o gato sou eu, não é mesmo?
— Aí é que você se engana. O gato é
você, na sua opinião. E sua opinião é suspeita, porque formulada pelo
consciente. Ao passo que, no subconsciente, o gato é uma representação do que
significo para você. Portanto, insisto em dizer: o gato sou eu.
— E eu insisto em dizer: não é.
— Sou.
— Não é. O senhor por favor saia do meu
gato, que senão eu não volto mais aqui.
— Observe como inconscientemente você
está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem…
— Que é que há, doutor? Está me chamando
de chantagista?
— É um modo de dizer. Não vai nisso
nenhuma ofensa. Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida,
mesmo num sonho, na forma de um gato.
— Pois se o gato sou eu! Daqui a pouco o
senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.
— Olhe aí, não estou dizendo? Olhe a sua
reação: isso é a sua maneira de me agredir. Não posso cobrar consulta dentro do
seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.
— Já disse que o gato sou eu!
— Sou eu!
— Ponha-se para fora do meu gato!
— Ponha-se para fora daqui!
— Sou eu!
— Eu!
— Eu! Eu!
— Eu! Eu! Eu!
Fernando Sabino. O
gato sou eu. Contos brasileiros. Editora Record, 1984.
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