A arte de não fazer nada
Cecília Meireles
Dizem-me que mais de
metade da humanidade se dedica à prática dessa arte; mas eu, que apenas recente
e provisoriamente a estou experimentando, discordo um pouco da afirmativa. Não
existe tal quantidade de gente completamente inativa: o que acontece é estar essa
gente interessada em atividades exclusivamente pessoais, sem consequências
úteis para o resto do mundo.
Aqui me encontro num
excelente ponto de observação: o lago, em frente à janela, está sendo
percorrido pelos botes vermelhos em que mesmo a pessoa que vai remando parece
não estar fazendo nada. Mas o que verdadeiramente está acontecendo, nós, espectadores,
não sabemos: cada um pode estar vivendo o seu drama ou o seu romance, o que já
é fazer alguma coisa, embora tais vivências em nada nos afetem.
E não posso dizer que não
estejam fazendo nada aqueles que passam a cavalo, subindo e descendo ladeiras, atentos
ao trote ou ao galope do animal.
Há homens longamente
parados a olhar os patos na água. Esses, dir-se-ia que não fazem mesmo absolutamente
nada: chapeuzinho de palha, cigarro na boca, ali se deixam ficar, como sem
passado nem futuro, unicamente reduzidos àquela contemplação. Mas quem sabe a
lição que estão recebendo dos patos, desse viver anfíbio, desse destino de
navegar com remos próprios, dessa obediência de seguirem todos juntos, enfileirados,
clã obediente, para a noite que conhecem, no pequeno bosque arredondado? Pode ser
um grande trabalho interior, o desses homens simples, aparentemente
desocupados, á beira de um lago tranquilo. De muitas experiências contemplativas
se constrói a sabedoria, como a poesia. E não sabemos – nem eles mesmos sabem –
se este homem não vai aplicar um dia o que neste momento aprende, calado e
quieto, como se não estivesse fazendo nada.
Assim os rapazinhos que
se divertem em luta violenta, derrubando-se uns aos outros, procedem a uma
avaliação de forças, de golpes de habilidade: lições de assalto e defesa, postas
em prática espontaneamente. Pode algum curso ser mais interessante do que este,
que encontra já os alunos vivamente dispostos a segui-lo? E aqui pelo salão
fala-se de coisas que muitos julgariam fúteis: de jogos de cartas, do valor
convencional de ases e coringas. Mas os que assim conversam estão de tal modo necessitados
desses conhecimentos como outros, neste mundo, de uma leitura filosófica ou
científica. Não se pode, em sã consciência, dizer que não estejam fazendo nada.
Mesmo estas mocinhas
que trouxeram para a vitrola seus ruidosos discos americanos e ainda
recomendam: "Ponha bem alto! Ponha bem alto!", embora conversem de
outra coisa e não prestem nenhuma atenção à música, estão escravizadas ao seu
ritmo, que vão acompanhando com os ombros, com as mãos, com requebros da
cabeça. Não estão fazendo nada? Mas estão disciplinando a sua própria cadência;
estão acertando pelo compasso da época (se é pior ou melhor esse compasso, quem
o ousará dizer?) a sua própria vida, como o colegial que acerta, em pauta
dupla, sua caligrafia.
Não, não; estou
desconfiadíssima de que a tal arte de não fazer nada não existe. Pois estas
senhoras, certamente, vieram para aqui a fim de não se dedicarem a coisa
nenhuma: e eis que encontram trabalhos dobrados, pois a cada hora do dia pensam
em mudar de roupa e em se fazerem mais originais e mais bonitas. E os cavalheiros
que as acompanham, com tanto tempo que agora têm à sua disposição, dedicam-se a
gentilezas e solicitudes que representam um trabalho meritório, sem dúvida, mas
delicado e ininterrupto. Quem falou em férias, em descanso, em arte de não
fazer nada? As pessoas mais disponíveis são as que vêm tratar da saúde. Pois de
manhã cedinho já estão vestidas, a caminho do balneário, onde lutam com os seus
cálculos e alergias, em vigorosos banhos, em duchas e massagens. E atravessam a
manhã ocupadas com o relógio, a controlarem os goles d'água de seus copinhos. E
atravessam o dia ocupadas com a sua dieta e o seu descanso, de modo que seria
grande injustiça imaginar que não estejam fazendo nada.
Até as crianças, que
gozam da fama de uma existência de contínua gratuidade, tentam, à tardinha,
brincar de roda, recitar versos, dançar e cantar, o que lhes custa um enorme
esforço, pois as tradições vão desaparecendo. E é tudo assim. Não vejo nada
inativo: nem estas nuvens que parecem paradas, nem estes passarinhos que voam
para o norte, nem o cavalo abandonado à margem da estrada, que meneia a cauda indolentemente.
Apenas, talvez haja um valor e uma hierarquia nessas atividades. Mas quem sou
eu, para defini-las e recomendá-las?
Cecília
Meireles. O que se diz, o que se entende.
Crônicas. Ed. Nova Fronteira, 1980.
Obrigada pela postagem.
ResponderExcluirAchei esse texto em uma forma mais resumida em outro lugar.
Mas, fiquei feliz de encontrá-lo maior aqui.
Não sabia que se tratava de uma crônica.