Festa



Cecília Meireles

Entre muros brancos de fortaleza, o som do piano. A sombra do piano projetada nos muros brancos, desconforme. Duas mãos pequenas fazem toda aquela música, rumorosa, grandiosa: aquele oceano sentimental.
É um mundo de cravos vermelhos presos em fitas douradas; de rendas, de joias enormes.  
Os parapeitos derramam-se para a noite, para o espaço, para a via láctea. E as moças nos: parapeitos são outras vias lácteas, são cometas diáfanos, com seus longos vestidos vaporosos, seus cabelos em nuvem, a fosforescência da sua ornamentação.  
Em toalhas de renda com laços cor-de-rosa, iremos comer manjar branco, com umas colheres de prata que a luz fosca dos grandes lampiões converterá em longos peixes esguios, de cauda blasonada.
A noite cálida tem uma frescura subterrânea, em redor dessa mesa descomunal, de um tempo de fidalgos gigantescos, treinados em cavalgadas, caçadas, espadas — mas também com certo requebro lânguido, fadigas saudosas de linhos macios, cristais lapidados, cestas, leques, refrescos...
 A dona da casa é uma rainha de raça misteriosa, toda enrolada em seda branca das espáduas à ponta dos pés. Com diadema de rosas e diamantes, continuará sentada em seu trono — que é uma enorme cadeira de balanço — de onde acompanhará vagamente a apaixonada cadência do piano e o movimento geral da festa.  
E uns rapazes de cabelos cetinosos, com grandes olhos do século XVI, virâo servir em frágeis porcelanas um café que perfuma o palácio, a ilha, o mar. E com o café, o açúcar, o tabaco, as bebidas ardentes recordarão que estamos num lugar de palmeiras e canaviais, com tapetes de areia morna franjada de espumas verdes e azuis.
É um mundo de cravos vermelhos, de luzes antigas, e espelhos suntuosos, por onde deslizam pessoas fora do tempo, que ao som do piano se tornam completamente irreais.
Do lado da terra, ouve-se o abafado planger da fonte, em sua bacia de pedra. Os insetos zunem, estalam, ciciam: há uma teia de músicas a estender-se na sombra.
Do lado do mar, uma solidão imensa, e o luar nas águas.
Há uma angústia de perfumes, uma excitação romântica, uma sensação de ternura e fatalidade, como se esta noite fôssemos todos morrer de amor.
Mas talvez seja apenas porque o palácio tem estes muros grossos de fortaleza, e em redor é a noite, e em redor é o mar — e o piano canta uma espécie de melancolia que transforma a festa numa cerimônia humana muito pungente, sem nada do cotidiano, mas só de memórias e desejos essenciais.  

Cecília Meireles. Crônicas para jovens. São Paulo: Global, 2012.

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